A Arte Subtil de Saber Dizer que se F*da! - Artigo na Revista Sábado online
Mark Manson é o primeiro bestseller de 2018 em Portugal e consegue-o com uma simples capa laranja, só com palavras e um título provocador: A Arte Subtil de Saber Dizer que Se F*da. A edição portuguesa é igual à original, americana, de 2016, com um salpico no que se f*da (no original: not giving a f*ck)
Mark Manson assume-se contundente, ainda que o salpico envergonhado no f*ck e no f*da lhe encurte um pouco a vara.
Mas a maior estranheza talvez seja o facto de A Arte Subtil de Saber Dizer que Se F*da partir de um pressuposto interessante – o combate à praga dos livros de auto-ajuda –, mas depois, ao beber o que o autor escreve (neste livro e no seu site), o leitor ficar com a sensação de que acabou de ler um livro de auto-ajuda.
Querendo combater a auto-ajuda, como explicar o pós-título "Uma abordagem contra-intuitiva para viver uma vida melhor"? Ou dizer, lá dentro, que "este livro não o ensinará a ganhar ou a concretizar, mas a perder e a desapegar-se. Ensiná-lo-á a ralar-se menos. Ensiná-lo-á a não tentar." Ou como explicar que os artigos que escreve sejam creditados como "that can change your life" (que podem mudar a sua vida)?
Mark Manson não está a dar entrevistas, não sendo por isso possível desfazer o eventual equívoco. Poder-se-ia perguntar-lhe se não está a acontecer consigo o fenómeno "pela boca morre o peixe".
(Em português, Mark Menson perceberia, porque viveu muitas temporadas no Brasil entre 2012 e 2016 e casou-se com uma brasileira. O casal mudou-se para Nova Iorque e na despedida Manson escreveu um polémico artigo em que atribuía o atraso do Brasil ao egoísmo individual dos seus cidadãos.)
Não seria uma pergunta que o deixasse embaraçado, porque Manson trabalha sobre a rede da autodesresponsabilização – "Sou apenas um tipo que lê muito, e que não leva a sério nada do que diz", define-se no seu site. É o mesmo que acontece quando Ricardo Araújo Pereira diz que é só um pateta ou quando Pedro Chagas Freitas diz que é só um gajo que escreve cenas.
Tal como não haveria problemas se João Moutinho falhasse aquele penalty no Europeu depois de Cristiano Ronaldo lhe dizer que "se perdermos que se foda", este livro começa com um falhanço assumido – Charles Bukowski, o escritor "alcoólico, mulherengo, viciado em jogo, malcriado, parasita, vadio", que só conseguiu que lhe publicassem um livro aos 50 anos.
Manson diz - ainda que não o sustente com nada; diz apenas - que o sucesso de Bukowski adveio de não tentar ser o que não era, de se assumir como um falhado e de se sentir confortável nessa pele, de se basear nisso para escrever. Esta é a lição – não fingir, aceitar o fracasso.
"As pessoas já não percebem que não faz mal, de vez em quando, as coisas serem uma treta."
"Este livro quer que se foda o alívio dos seus problemas ou das suas dores."
"A cultura actual está obsessivamente focada em expectativas positivas irrealistas, tretas positivas e felizes de auto-ajuda que estamos sempre a ouvir, focadas naquilo que nos falta, aquilo que não somos, aquilo que devíamos ter sido mas não conseguimos ser."
E mais:
"Agora sentimo-nos uma merda, nem que seja por cinco minutos, e somos bombardeados com 350 imagens [nas redes sociais] de pessoas completamente felizes, vivendo umas vidas tremendas e é impossível não sentirmos que há algo de errado connosco. É esta última parte que nos perturba. Sentimo-nos mal por nos sentirmos mal. É por isso que dizer "que se foda" é tão importante."
Há um pequeno problema aqui, na medida em que é o próprio Mark Manson que parece passar essas "expectativas positivas irrealistas" quando expõe a sua curta mas já tremenda vida de 33 anos e servi-la como exemplo.
Fá-lo tantas para sustentar as teorias que estas parecem existir porque lhe aconteceram coisas na vida. Manson impõe a sua biografia quando a cruzada do "que se foda" é supostamente para livrar o leitor do que lhe impõem. Pior, soa a gabarolice e proselitismo.
Um dos melhores exemplos acontece quando Manson diz que se demitiu do seu primeiro emprego, num banco, porque não era feliz. "Deixar o meu emprego na área das finanças apenas seis semanas depois de ter iniciado um negócio na Internet é um dos momentos mais gloriosos no meu hall of fame do que se foda. O mesmo quando decidi vender a maior parte das minhas coisas e mudar-me para a América do Sul. O que é que me ralei? Nada. Fui e fiz."
A mensagem parece clara: o leitor que faça o mesmo. Se não conseguir, ou não puder, o que é o mais provável, a consequência será um dos problemas dos livros de auto-ajuda que o próprio Manson identifica (e bem) algures: "Reforçam a percepção de inferioridade e culpa."
Depois, Manson teve alguns negócios na Internet, esteve "falido várias vezes", vendeu tudo o que tinha, dormiu inúmeras noites no sofá de amigos e andou a correr mundo – "mais de 60 países" –, até perceber que a sua paixão era escrever sobre Filosofia e Psicologia, assuntos que lhe interessavam desde petiz. "Enquanto os outros miúdos andavam a ouvir Backstreet Boys e a ver a MTV, eu lia Nietzsche."
Que leitor – inocentemente ocupado a brincar aos berlindes na infância – não se sentirá agora inferior depois de ler isto?
Pelo meio, Manson aprendeu três ou quatro línguas, fez surf e ioga, dançou tango, escalou vulcões, cantou, riu, chorou, fez amor com muitas mulheres, divertiu-se, foi uma grande festa, foi tudo com pouco dinheiro, parece que não se percebe muito bem porque é que qualquer um de nós não haverá de fazer o mesmo.
Houve mais: "Os meus pais decidiram divorciar-se. Conto tudo isto apenas para salientar que a minha adolescência foi miserável. Perdi todos os meus amigos, a minha comunidade, os meus direitos legais e a minha família num espaço de nove meses."
A mensagem continua clara: ele chegou onde chegou (é um bestseller – vendeu dois milhões) e no entanto teve a coragem de começar do zero e passou por inúmeras adversidades, mas foram essas adversidades que o levaram aonde está hoje, por isso "a adversidade e o fracasso são realmente úteis e até necessários para o desenvolvimento de adultos mentalmente fortes e bem-sucedidos", por isso deve adoptar-se o estilo que se foda, porque isso resultou com ele. E sobretudo é preciso saber que "o prazer é óptimo, mas é um valor péssimo para se tornar a prioridade da nossa vida".
Manson parece ignorar quão injusto é usar a sua história, bem como as histórias de personalidades como Bukowski. Ainda que seja absolutamente tentador começar do grau zero de Bukowski (álcool, mulheres, jogo e vadiagem), haveria depois o problema de não ter um talento escondido, como Bukowski tinha. Não o tendo, o exemplo de Bukowski vale o que vale neste contexto: zero.
São pormenores. Ou, como diria Mark Manson, são merdas. "Aonde quer que vamos, há 200 quilos de merda à nossa espera. E isso não tem problema nenhum. A questão não é fugir da merda, é descobrir a merda com que gostamos de lidar."