A Chegada das Trevas - Artigo no jornal DN

 

Formada em Estudos Clássicos por Cambridge e jornalista do The Times, veio a Portugal apresentar o seu livro A Chegada das Trevas - Como os Cristãos destruíram o Mundo Clássico

A jornalista britânica do The Times confessa ser uma velha apaixonada pelo mundo clássico e que a revoltava que o fim abrupto da civilização greco-romana às mãos do cristianismo fosse pouco ou nada estudado. Com grande coragem, Catherine Nixey escreveu A Chegada das Trevas, livro editado em Portugal pela Desassossego.

O seu fascínio é pelo Império Romano, muito mais do que sobre esses primeiros cristãos fanáticos que relata no livro?

Sou filha de um antigo monge e de uma antiga freira, por isso fui criada a acreditar numa certa realidade sobre a forma como o mundo cristão começou, mas quando me formei em Estudos Clássicos na Universidade de Cambridge li muito e percebi que o que os meus pais me tinham dito não correspondia ao que a história ensinava. Já não conseguia acreditar que esses dois mundos intelectuais, o clássico e o cristão, se dessem tão bem como me tinha sido dito. O meu interesse em escrever este livro baseou-se no facto de a história que tinha sido contada não ser a história toda.

Discorda da ideia de que a Igreja Católica é a herdeira do Império Romano?

Sim. Ocupa a mesma área geográfica. O Papa está em Roma. E parece o mesmo porque se entrar numa igreja muitos dos traços arquitetónicos vêm dos templos antigos. Muitas igrejas são templos reconvertidos. Mas, para ser correta, não podiam ser mais diferentes o Império Romano e a Igreja Católica.

Decidiu começar o seu livro com uma ideia forte ligada à realidade atual, conta a descrição de um ataque no século IV por cristãos fanáticos a Palmira, na atual Síria, que há bem pouco tempo foi também vandalizada pelo Estado Islâmico, o Daesh. É importante usar algo de interesse do tempo atual para suscitar a curiosidade pelos tempos antigos?

Bem, é a verdade. A mesma estátua de Atena que foi atacada há cinco anos pelo Daesh porque os seus militantes achavam que era demoníaca foi atacada em 385 por cristãos porque estes achavam que tinha demónios dentro. Esta história tem sido pouco contada. E quando foi contada tem sido desculpada pelo menos nos livros de história britânicos, que são os que conheço mais. As pessoas falam disto com indulgência. Desculpam este tipo de episódios. Por exemplo, dizem: "Oh, São Martinho se calhar teve excesso de zelo, se calhar deixou-se levar pelo entusiasmo." Mas era um bruto e os seguidores uns fanáticos.

Esta atitude de fanatismo dos primeiros cristãos como a que conta em Palmira era a regra ou um fenómeno da zona oriental do Império Romano?

Parece estar concentrada na zona oriental do Império Romano. O próprio Império Romano nessa época estava cada vez mais concentrado na parte oriental do império. A sua influência esmorecia nas atuais França e Inglaterra. Mas há vestígios arqueológicos desta violência em França e até no oeste de Inglaterra, na cidade de Bath, conhecida pelos seus banhos romanos, onde há uma estátua de bronze de Minerva que foi decapitada de forma violenta.

Todas as histórias de santos e mártires no início da cristandade são apenas uma parte da realidade? Também há mártires do Império Romano, pessoas que foram atacadas e mortas pelos cristãos?

Sim. Houve pessoas atacadas pelas multidões cristãs. E não posso deixar de sublinhar que algumas das pessoas que estavam a fazer os ataques também se suicidavam porque lhes tinham dito que no céu receberiam a recompensa cem vezes. Isto é interessante e inesperado. Não se imagina a quantidade de vezes que os governadores romanos imploraram aos cristãos para não se matarem. Em vez das histórias cristãs de que os romanos estavam desesperados para os matar, perguntavam-lhes se não pensavam na mãe. Queriam que se conformassem com o império, não matá-los.

Comparando os primeiros cristãos com os extremistas muçulmanos de hoje há uma grande diferença. O cristianismo era uma jovem religião na altura enquanto o islão tem já 1400 anos. Podemos tentar perceber aquele momento por ainda não haver regras claras em relação ao que era a religião de Cristo?

Não estou a dizer que o fanatismo cristão do século IV e o fanatismo islâmico de hoje são a mesma coisa. No livro discuto isso. Só tento que as pessoas vejam os primeiros cristãos com o olhar com que estes merecem ser vistos. Não devem ser vistos com indulgência. Não devemos achar que tudo estava correto. É preciso ver como esta conquista foi importante para a Europa, mas não foi tão virtuosa como acreditamos que tenha sido. Mesmo quem goste da igreja cristã tem de duvidar dos seus métodos. O facto de a igreja ser nova não a desculpa nem faz que o que fez estivesse correto. E a antiguidade não desculpa o esmagar-se uma estátua. Se és um bandido violento, és um bandido violento.

De que forma é que a Igreja Católica e outras igrejas cristãs olham para este passado? Reconhecem estes momentos de extremismo ou tentam reescrever a história de uma forma positiva para elas?

Há inúmeras biografias de Santo Agostinho, por exemplo. Mas não há inúmeros livros sobre a destruição que foi feita dos livros clássicos. O primeiro livro que estuda a destruição de estátuas na zona oriental do Império Romano só foi publicado em 2015.

É culpa dos historiadores ou das igrejas?

Não. Não culpo as igrejas. Bem, é a história. Mas o problema, na minha opinião, é que para ser teólogo em Oxford ou Cambridge até 1871 era preciso ser ordenado vigário. Era preciso pertencer à igreja para estudar a igreja. Para estudar naquelas universidades era preciso seguir a fé da Igreja Anglicana. Era preciso ser cristão e dizer que se acreditava naquilo. E é difícil partir dessa posição e olhar criticamente para a Igreja e para determinado ponto na história, sobretudo o início, visto como o mais puro.

Hoje temos grande admiração pelos clássicos, pelo que os gregos e romanos escreveram. Isso é resultado do renascimento e não da Idade Média, certo?

Os primeiros cristãos eram muito céticos. Santo Agostinho era cético em relação aos filósofos e celebrou a sua destruição. São Jerónimo travou uma batalha sem fim com pesadelos em que Deus o acusava de ser um seguidor de Cícero. Alguém escreveu a São Jerónimo a perguntar porque se estava a poluir. Era a palavra que usava para se referir à sujidade do mundo clássico. São Basílio dizia às pessoas para se livrarem dos estudos clássicos. Não para se livrarem deles de facto, mas para não os lerem. E havia uma norma que dizia para ficarem longe dos livros pagãos. Eram perigosos. Diziam coisas como há muitos deuses. Ou não há deuses. Diziam que somos todos feitos de átomos. Isto são coisas perigosas para os cristãos lerem.

Então a Idade Média foram as trevas?

Estava a ouvir há dias uma arqueóloga e ela dizia - ao contrário dos académicos que garantem não ter havido colapso depois do Império Romano - que quando estava numas ruínas na Turquia e teve de tomar banho usou uns baldes de água aquecidos ao sol e que tinham buracos para servir de chuveiro. E, porém, sublinhou, no tempo dos romanos havia água quente e fria canalizada naquele mesmo local. Por isso, se a água canalizada for a medida de civilização percebemos muita coisa.

Publicado em 21 Junho 2018

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