A Lenda de Shannara: o mundo depois da magia
Hoje, ver as prateleiras ocupadas por livros de fantasia, com elfos, anões e dragões, é uma situação comum. Nem sempre foi assim. Até ao final da década de 1970, a única fantasia épica que tinha alguma visibilidade comercial era O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien. Até que Lester del Rey, um dos maiores editores de literatura fantástica de todos os tempos, descobriu, na pilha de manuscritos no seu escritório, o livro de um escritor estreante que estudava Direito e usava o seu tempo livre para escrever. Vendo ali uma excelente oportunidade de dar aos leitores algo além de Tolkien, Lester del Rey resolveu apostar na obra. Depois de várias leituras e revisões, em 1977 foi lançado A Espada de Shannara, de Terry Brooks… desde então, a literatura fantástica nunca mais foi a mesma.
Ali começou uma saga que se estendeu por mais de vinte livros e que deverá terminar em 2018 – por decisão do próprio autor, que prefere, ele mesmo, dar o ponto final e não deixar os leitores sem uma resposta. Muitos dos autores que depois vieram a trabalhar nessa linha devem a Brooks tanto ou mais do que a Tolkien: a sua influência é visível nas obras de Robert Jordan, Brandon Sanderson, Kate Elliott, Christopher Paolini – e até mesmo naqueles que fizeram uma fantasia mais sombria, como Glen Cook e George R. R. Martin.
No prefácio de A Espada de Shannara, Brooks reconhece a sua dívida com Tolkien, mas aponta que, para lá da fantasia, ele gostava – e ainda gosta – de histórias de aventura. Na lista de seus autores preferidos estão nomes como Robert Louis Stevenson, Walter Scott e Arthur Conan Doyle. Esse espírito transparece não só em A Espada de Shannara, mas em todos os livros posteriores do autor trazendo histórias de aventura e ação num mundo fantástico e inesquecível.
O que tornou esse mundo tão especial?
No passado, grandes guerras aconteceram, mudando a face do mundo por completo. A tecnologia e a ciência foram sendo suplantadas pelos conhecimentos místicos, que pareciam oferecer respostas mais adequadas a um mundo completamente novo para a humanidade.
Sim, tecnologia. Os livros da série escrita por Brooks passam-se num mundo “pós-apocalíptico”, no qual a civilização tecnológica a que estamos acostumados se autodestruiu com armamentos sofisticados e devastadores. Os poucos sobreviventes humanos esconderam-se e adaptaram-se, encontrando aos poucos novas raças – elfos, anões, trolls, gnomos e outras criaturas fantásticas –, que se entreolhavam com medo e cautela, pois temiam os seus vizinhos. E todas disputaram, em guerras sangrentas, um espaço naquele território hostil e pouco conhecido. Esta inimizade fez com que os habitantes das Quatro Terras se isolassem e se separassem: a cada raça, seu território.
A vida de Shea Ohmsford, nos recantos do Vale Sombrio, passava ao largo dessas grandes questões. Aliás, ele seria apenas mais um entre os habitantes das Terras do Sul se não fosse um detalhe da sua origem: Shea era filho de uma humana com um elfo, nascido nas Terras do Oeste, onde ficava a nação élfica. Com a morte do seu pai, foi levado de volta ao Vale Sombrio pela mãe, que também não resistiu. Foi criado pelo estalajadeiro Curzad Ohmsford, um primo distante de sua mãe, e passou a levar uma vida absolutamente comum, até o dia em que Flick, o seu irmão adotivo, levou um estranho homem vestido de negro até à estalagem onde moravam. O seu nome era Allanon e os segredos que ele contou mudaram não só a vida de Shea, mas o destino do mundo.
Allanon era um filósofo e historiador que vagueava pelas Quatro Terras, atento às alterações e mudanças que aconteciam. E foi o que ele viu nas suas viagens que o levou até Shea Ohmsford.
Um antigo inimigo das raças pacíficas das Quatro Terras ia ressurgindo e reunindo um exército composto por trolls e gnomos, habitantes das Terras do Norte. Esse inimigo era conhecido como Lorde Feiticeiro e desejava cobrir o mundo com a sua sombra, derrotando nação após nação. O seu poder era tão grande, e o seu exército tão imenso, que somente uma arma poderia derrotá-lo: a Espada de Shannara.
Confecionada 500 anos antes, essa arma foi forjada especialmente para o banir da existência. Porém, apesar da sua derrota, o Lorde Feiticeiro voltou, pronto para dominar tudo. Para derrotar definitivamente o Lorde Feiticeiro, a única esperança residia em alguém com o sangue do antigo Rei Élfico Jerle Shannara, para empunhar a Espada mais uma vez.
E é aí que o jovem meio-elfo de origem desconhecida entra: ele é o último descendente dessa heroica linhagem e a única pessoa nas Quatro Terras capaz de usar a Espada.
Cabe, portanto, a Shea, guiado por Allanon e acompanhado por Flick, recuperar a Espada e enfrentar o Lorde Feiticeiro. Mas a jornada é mais complicada do que parece e, entre aliados inesperados e inimigos ocultos, os dois irmãos precisam de toda a coragem para continuar em frente, ainda mais porque o Lorde Feiticeiro sabe da existência de Shea e fez com que os Portadores da Caveira, Druidas que se entregaram aos poderes sombrios, os seguissem.
No espírito de J. R. R. Tolkien, influência reconhecida pelo próprio Brooks, em A Espada de Shannara acompanhamos a jornada de Shea Ohmsford e os seus companheiros, com o mesmo objetivo e com personalidades muito diferentes. Com o passar do tempo e das dificuldades do caminho, novos companheiros chegam enquanto outros partem, e a busca pela Espada leva-nos a conhecer vários lugares das Quatro Terras.
Receção e influência
No mês do seu lançamento, em 1977, A Espada de Shannara vendeu mais de 12 mil exemplares, uma marca extraordinária para um livro de fantasia, levando o mercado editorial a repensar a sua visão sobre este género literário. O seu sucesso também levantou vozes críticas – e o ponto mais discutido pelos críticos foi justamente a semelhança com O Senhor dos Anéis. Porém, o livro teve fãs fervorosos e célebres: Frank Herbert, autor de Duna, fez uma longa defesa da obra, ressaltando as suas qualidades, principalmente no que se refere aos conflitos e às criaturas que aparecem naquela jornada.
E ele não foi o único. A aventura de Shea Ohmsford em busca do artefacto mágico gerou um fluxo imenso de fãs que se multiplicam até hoje, a cada lançamento. Boa parte dos livros de fantasia épica atuais, género que tomou a sua forma definitiva com a obra de Brooks, rende tributo a Shannara, assim como aos cenários de RPG mais conhecidos do planeta, os mundos de Dungeons & Dragons. Estava mais do que na hora dos leitores portugueses poderem colocar as mãos no livro que começou uma das mais importantes sagas literárias da Fantasia.
Autora: Ana Cristina Rodrigues para a Revista Bang! em maio 2014. Texto adaptado para o lançamento do livro em Portugal.