Algo Maligno Vem Aí - Crítica no blogue O Papiro de Seshat

Algo maligno vinha certamente aí, naquela noite em que Jim Nightshade e Will Halloway, amigos inseparáveis nos seus 13 anos de idade, distantes de nascenças por minutos separadas, ouviram o distante e sombrio calíope que anunciava a chegada de uma feira, tardia feira, naquele outono, triste outono e um carrocel da vida prestes a iniciar a sua maior volta.

Monstros e aberrações, carrocéis e divinações; bruxas e anões, heróis e vilões!

Eis a feira de Cooger & Dark: medo e promessas, magnífico e o grotesco, brincadeiras, tentações, sonhos e desilusões. Uma carta no punho, um punhal na infância, o infantil na memória, o memorável da amizade sincera.

Aproximem-se, amontoem-se, acorram ao fantástico, fantasiem com o maravilhoso, maravilhem-se com o prodigioso!

E temam. Temam os seus cantos e recantos, esquinas e sombras. Desconfiem, tremam, ouçam o gelar do vosso sangue e fechem as janelas, tranquem as portas. Não ouçam a sua hipnose, não lhe peçam os vossos sonhos, ser-vos-á cobrada a alma.

"Algo Maligno Vem Aí", do conceituado e profícuo Ray Bradbury, é, em muito poucas palavras, um fluido e magicamente tecido romance de fantasia e terror, que puxa, agarra, embebe o leitor na sua aura e o infla da magia que Bradbury transmite na sua narrativa.

Em mais palavras, é algo mais profundo.

Ao circo, às feiras ambulantes, ninguém lhes negará o fascínio e o misterioso, aquele carácter prodigioso incorporado por seres estranhos, animais exóticos e mágicos prodigiosos, gente que parece ter pés neste e no outro mundo. O imaginário infantil vibrava, fervilhava, pulava e dançava, na mente excitada de coração ribombante, à espera do susto, do incrível, do riso, do inacreditável.

Quem não se lembra?

E quem nunca desejou crescer, ser maior, grande, adulto, homem e mulher?

Para um dia desejar minguar, ser menor, pequeno, infantil, menino e menina?

Há em "Algo Maligno Vem Aí" uma longa reflexão sobre a idade e o tempo das coisas, nem tarde, nem cedo demais: no momento certo. Jim quer crescer, Will quer dar tempo, Charles Halloway quer recuperar a juventude. Mas o que significa ser adulto antes do tempo, criança após a primavera?

A feira chegada pela calada da noite, encabeçada pelo peculiar Homem Pintado com as suas tatuagens vivas e o seu séquito de ecléticos seres de sonho e pesadelo, pode responder-lhes às ânsias. Enquanto os espectadores olham malabarismos e peripécias, diversões e guloseimas, a feira olha-os a eles, oferece-lhes um vislumbre dos seus próprios medos e ansiedades. É esse o seu anzol, o seu farol para as almas perdidas no alto mar do arrependimento.

Através da boca de Charles Halloway, que é talvez alma e voz de Bradbury, projeção do seu crer e acreditar, o autor tece considerações de suma importância sobre a essência do ser, a natureza do bem e do mal. A prosa de Ray é elaborada, intensa e expressiva, intensamente metafórica e repleta de pinceladas de mestria narrativa, mas é em Charles que ela se cristaliza, nesse personagem profundamente mais rico do que se imagina, mais sábio do que pensa. Dele emergem algumas frases e considerações verdadeiramente memoráveis, a visão do mundo de um homem que se descobre a si próprio e no processo se revela ao filho que julgava não o conhecer.

E não vivem tantos filhos na ignorância do valor dos seus pais?

As suas considerações sobre a mortalidade masculina ou a dificuldade que enfrenta o indivíduo que tenta ser bom, deixaram-me ali a simplesmente absorver o livro. Mas, habilmente, Bradbury alterna entre a sabedoria profunda de Charles, e a pelagem de criança. A escrita muda, a toada altera-se, e no entanto sempre com uma impressionante força, estocadas curtas e certeiras na nossa mente, golpes de considerações antropológicas que ecoam em nós, onde nomes e pistas identitárias poderiam ser omitidos sem que por um segundo perdêssemos noção de estar na mente de um adulto ou de uma criança.

Will e Jim, são mariposas atraídas para a feira, o último principalmente; o apressado, o incauto, ansioso por ser maior. Recuar tornar-se-á impossível antes que o saibam: a feira é exigente, não deixará de cumprir os seus objectivos, de atrair as moscas para a sua irresistível teia e eliminar aqueles que tentarem travá-la. Uma coisa apenas, e nada mais do que essa pequena grande coisa, pode defender Will e Jim do poder irresistível de Mr. Dark. Neste mundo de crianças que querem ser grandes e adultos que desejam ser pequenos, aquilo que as primeiras possuem e os segundos nunca deveriam perder, é a sua mais poderosa arma. Não é deliciosamente simples?

Ray Bradbury escreve como um exímio contador de histórias sem medo de encantar. Doce e tenso, mágico e pensativo, "Algo Maligno Vem Aí" é talvez a grande edição da Saída de Emergência neste final de ano, e uma das mais fortes narrativas do meu 2012.

Publicado em 2 Janeiro 2013

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