Antes de Sermos Vossos - Opinião no Cubo Geek
Before We Were Yours, título abençoadamente traduzido à letra ao português, foi um dos livros mais populares de 2017 no Goodreads, tendo vencido o prémio de melhor romance histórico. Sendo que este concurso consiste na votação livre de quase quatro milhões de leitores em todo o mundo (mas, claro, predominantemente no mesmo mundo em inglês em que todos vivemos), seria impossível pôr de lado a sua importância. A tradução ao português é da editora Saída de Emergência, a mesma que publicou A Guerra dos Tronos em Portugal, sendo esta a primeira edição de Fevereiro 2018 – uma tradução rápida devido à enorme procura.
Este não é, nem de perto, o primeiro romance da autora, Lisa Wingate – é o vigésimo oitavo. Não te preocupes, eu também nunca tinha ouvido falar nela. Wingate é uma ex-jornalista e mãe de dois filhos do sul dos Estados Unidos da América, e parece escrever exclusivamente histórias passadas neste recanto do mundo. Olhando para a lista dos seus romances anteriores, há um padrão claro nos nomes das suas numerosas séries: Texas Hill Country Books, Carolina Heirlooms, Daily Texas Books, Tending Roses… Se bem que alguns destes me causem algum interesse, não diria que fossem algo que me fosse atrair imediatamente ao ler a contracapa numa livraria. Antes de Sermos Vossos é diferente.
Neste livro, a autora cria uma combinação entre aquilo que parece ser a sua temática de eleição – jovens mulheres do Sul dos EUA – e um drama histórico real e pungente. O resultado final é surpreendentemente bom. Tenho que admitir que quando comecei a ler não tive boas expectativas. A personagem principal é Avery Stafford, uma jovem loira e rica que abandona temporariamente a sua carreira como advogada para regressar para junto da família na Carolina do Sul. O pai está doente e ela tem que se preparar para assumir o “legado da família” participando em eventos políticos. Avery é linda, simpática, e o seu diálogo mental anda muito à volta do seu noivo maravilhoso e das suas roupas neste primeiro capítulo.
Não é necessariamente o meu género de livro, mas o segundo capítulo mudou tudo. A história, escrita num intrigante tempo gramatical presente simples e na primeira pessoa do singular, alterna entre duas personagens principais: Avery Stafford e Rill Foss. Enquanto que Avery parece viver em 2017, mesmo ano da publicação, Rill vive em 1939 e a sua vida é bem diferente. Rill vive numa casa flutuante no rio Mississipi juntamente com os pais e os quatro irmãos, num estado de pobreza não atípico desta época da Grande Depressão nos Estados Unidos, mas mesmo assim num estado de felicidade familiar idílica. Previsivelmente, isto não dura durante muito tempo.
Antes de Sermos Vossos é essencialmente sobre o tráfico de crianças, baseando-se na documentação existente sobre os crimes perpetrados por Georgia Tann e pela sua Sociedade de Acolhimento de Crianças do Tennessee. Esta associação bem real esteve activa entre os anos de 1920 e 1950, e é hoje infame por ter vendido crianças a pais ricos, sendo que muitas das vezes estas crianças não eram nem órfãs, nem abandonadas pelas famílias – eram simplesmente raptadas. Lisa Wingate utiliza as suas personagens fictícias e coloca-as nas mãos desta Sociedade dolorosamente real, dando a conhecer o inferno vivido por milhares de crianças e suas famílias às mãos de Georgia Tann e dos seus associados.
Não é uma história fácil de se ler, e o relato acutilante de Rill Foss tem toda a inocência da infância. Passamos da magia de uma vida segura no rio à incertidão e ao horror que Wingate captura tão habilmente, nunca ignorando os pequenos pormenores do dia a dia que muitas vezes faltam noutras histórias e que fazem com que todo o quadro pareça tanto mais autêntico. Por entre os capítulos passados em 1939, os capítulos da aparentemente insípida Avery Stafford começam a ganhar outra cor enquanto ela se envolve numa investigação que a vai levar a descobrir segredos familiares guardados por gerações e que a vão levar a mudar a maneira como encara a sua própria identidade. A personagem em si evolui ao longo da história, e é gratificante chegar a um final no qual ela se torna numa pessoa com a qual nos podemos identificar muito mais facilmente do que no início.
Esta é uma história com uma temática incrivelmente pesada contada com uma leveza e uma perspectiva que a torna viciante, impelindo o leitor até ao fim com a necessidade não tanto de desvendar um mistério mas sim de descobrir os destinos de personagens tão vívidas que se nos tornam queridas muito rapidamente. Antes de Sermos Vossos é um romance simultaneamente actual e histórico, adulto e infantil, luminoso e obscuro, e é esta dicotomia que lhe dá o seu carácter único e que o tornou tão rapidamente e profundamente estimado pelos leitores. Fica a recomendação de um livro que pode parecer um pouco aborrecido ao início mas que nos dá a volta muito depressa, e que vale bem a pena no fim.