Discurso de João Paulo Sacadura no lançamento de Fernando Pessoa, O Romance

FERNANDO PESSOA – O ROMANCE de Sónia Louro

 

Lançamento na Livraria Ferin Lisboa, 7 Novembro 2014

 

Preâmbulo

 

Boa tarde!

Antes de mais, queria agradecer o convite à Sónia, à Saída de Emergência – e já agora à Ferin, livraria com pergaminhos que tanto aposta na cultura e em particular numa das suas áreas que me é mais querida, o património.

Não é primeira vez que apresento uma biografia de FERNANDO PESSOA. Quando há dois anos apresentei Uma quase autobiografia de José Paulo Cavalcanti Filho, esse grande escritor brasileiro, na Casa Fernando Pessoa, contou-me o autor depois que o Primeiro-Ministro era para estar presente na sessão. Chegou a estar à porta dentro do carro; um segurança subiu, e viu a sala de tal maneira à cunha com portugueses e brasileiros empoleirados em todas as cadeiras, recantos e escadas, que desceu e desistiu, por razões de segurança. É bom estar a apresentar esta obra, é sinal que já me curei, e não mordo. De qualquer modo fica o pedido para reservarem um lugarzinho aqui à frente, para ele e um ou outro dos seus capangas... Mas também aqui o problema não se põe, pois estamos na boa companhia da editora Saída de Emergência, por isso há sempre escapatórias!

Um esclarecimento prévio: tal como a autora optou, nesta obra, também eu vou falar seguindo a antiga grafia, não vou seguir o novo (des) Acordo Ortográfico... Por isso quando disser “ORPHEU” ou “OPHÉLIA” é com “PH”.

 

Sobre a autora

Quem nos reúne aqui hoje é esta bióloga marinha nascida em França, que há 7 anos largou os golfinhos e decidiu dedicar-se à escrita, e também pontualmente à ilustração das suas próprias obras; e desde então nos tem dado biografias algo polémicas de grandes personalidades... Ou talvez biografias de grandes personalidades algo polémicas: Viriato, D. Sebastião, Fernão Mendes Pinto, Aristides De Sousa Mendes, Amália.

Esta obra é mais uma boa ideia da SAÍDA DE EMERGÊNCIA, e enquadra-se naquela feliz política editorial que adoptaram e que por exemplo nos está a dar a História de Portugal em Romances, para assim a História do nosso País chegar a todos de uma maneira viva e atractiva.

 

A pessoa que foi Pessoa

Este trabalho é essencial. Há já muita coisa escrita sobre a obra de Pessoa... (estão contabilizadas quase 6 mil livros, até ao momento) mas faltava isto! Algo sobre o homem! Mas é essencial não tanto provavelmente para os académicos e consagrados especialistas pessoanos; mas para o GRANDE PÚBLICO – a começar pelos ESTUDANTES. Para conhecer melhor o autor daqueles poemas maravilhosos que vão ter de ler, de estudar, de saber.

E se a escola não os obrigasse deviam eles obrigar-se! Escrito na primeira pessoa do singular, revela-se como se fosse pela sua própria pena o homem para lá dos textos, dos poemas. O homem atrás dos versos, das ideias, dos sonhos. A pessoa que foi Pessoa. Com as suas frustrações, angústias, projectos, arrebatos de amor, conquistas, desejos, remorsos, vícios, medos, manias, pânicos, tiques, rotinas, momentos de humor, depressões, hábitos, segredos, memórias, obsessões e alegrias, poucas... Numa palavra, a sua humanidade. Porque tal como dizia Octávio Paz, o poeta mexicano Nobel da Literatura “Nada na sua vida é surpreendente, nada, a não ser a sua obra.”

 

Uma vida grandiosa de um poeta triste

Numa linguagem fluida e simples, como a Sónia nos habituou, aprendemos o contexto de uma vida com textos únicos. Sem a preocupação de ser exaustiva, dá-nos uma vida cheia em pinceladas com cor, gosto e sabedoria. Uma vida tão banal e algo triste para uma obra tão universal!

Escreveu o Mestre Alberto Caeiro: “Se depois de eu morrer quiserem escrever a minha biografia não há nada mais simples: só tem duas datas: a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus.” E agora são também de todos nós graças a esta obra: entre uma e outra data há 434 páginas de uma história de vida. E muito bem documentada: tem 471 notas, mais que as páginas. Sónia fez bem porque mistura de uma forma inteligente e muito coerente muitas referências e citações tiradas, naturalmente, de textos, poemas e cartas de Pessoa. Das várias pessoas que foi Pessoa!

 

A alegria da insónia

A Sónia fartou-se de trabalhar. E tal como o poeta, que dizia “Não consigo dormir. Cansa tanto viver! Não durmo nem tenho esperança de conseguir dormir...”, ela queixa-se que teve muitas insónias, que escreveu noite dentro, pede desculpa ao marido por isso. Insónias preciosas! Um estado de insónia inspirada... Qualquer dia mudam-lhe o nome para “IN-SÓNIA LOURO”! Foi sem dúvida este um LIVRO DO DESASSOSSEGO para a Sónia... E para toda a sua família.

Diz ela que “é difícil passar para o papel a alma de uma pessoa... E que dizer de 4, 6, 7...?” Porque este é afinal o poeta que foi muitos poetas! Estão levantados 72 heterónimos por Teresa Rita Lopes, e José Paulo Cavalcanti Filho acrescenta 55, somando todos os nomes com que Pessoa assinava qualquer texto: o primeiro aos 6 anos – Chevalier de Pas; o segundo aos 11 anos, na África do Sul – Alexander Search, ambos bem mencionados neste texto. E são tão importantes que diz Álvaro De Campos no primeiro encontro com Fernando Pessoa: “Fernando Pessoa não existe propriamente falando”...

Gostei muito e diverti-me muito a ler esta interacção dos heterónimos com o ortónimo, de como apareciam e se imiscuíam nos seus assuntos, nos seus diálogos, no seu namoro, na acção.

 

Pessoa: o que foi e o que fica

Perpassa neste romance uma vida muito variada e rica, daquele que foi ao mesmo tempo fundador da escandalosa revista ORPHEU, correspondente comercial, inventor, tradutor, editor, mnicas em casa da Tia Anica...sador das sessde vendedor de cautelas, ou de m, cidade...a jédium, astrólogo e publicitário (inventou em 1928 um famoso slogan para a Coca Cola, que levou Salazar a proibir a bebida, graças ao parecer do Dr. Ricardo Jorge).

 

Infância perdida

Relembramos a sua infância, de como ficou órfão de pai aos 5 anos, a “mamã”, como ele dizia, recasa aos 7, o irmão morre no ano seguinte e “o menino de sua mãe” perde os seus mimos... Escreve um dia: “Sinto a falta do calor e dos beijos que ela não me deu, mas que eu imaginei, e por isso os lembro e não são menos reais por não terem sido reais. Foram reais quando os imaginei!”

Forçado a partir para África do Sul; regressa a Lisboa no final da adolescência, aos 17, para não mais sair. Na escola de freiras irlandesas de Durban conta que “lá não fiz nenhum amigo, tal como não os fiz em lado nenhum”...

Logo em miúdo descobriu que era médium, mas era o elemento atrasador das sessões mediúnicas em casa da Tia Anica... “Muitos homens são necessPerpassa neste romance uma vida muito variada e rica, dquele que foi  OFe m, cidade...a jários para o teu êxito", foi uma comunicação mediúnica que recebeu um dia. Travou contacto com o mago e cocainómano inglês Aleister Crowley e a sua misteriosa e ninfomaníaca amante. Ele previu o ano em que ia morrer...

 

Os amigos e companheiros de Pessoa

Ao longo destas páginas somos apresentados a uma galeria impressionante de personalidades; porque o Pessoa cruzou-se com Mário De Sá-Carneiro (talvez o seu maior amigo), Almada Negreiros, Adolfo Casais Monteiro, Teixeira De Pascoaes, António Botto, José Régio, Camilo Pessanha, António Ferro, Eduardo Viana, Augusto Gil, Júlio De Matos, Amadeo, Pedro Monteiro, o filho do Monteiro Dos Milhões, da Regaleira...

 

O namoro com Ophélia Queiroz

Espreitamos o seu amor por OPHÉLIA QUEIROZ; “Nunca poderia saber fazer uma família, mantê-la, porque nunca me sento integrado numa!...”, desabafa...

Quando começa a namorar Ophélia sente-se grato por o mestre (Alberto Caeiro) ter morrido de tuberculose, o monárquico (Ricardo Reis) se ter auto-exilado no Brasil, e o engenheiro (Álvaro de Campos) ter viajado para Inglaterra. Este último, sobretudo, interfere imenso nesta relação... E ela não gostava dele.

Dizia ele um dia, ao descerem de eléctrico a Calçada da Estrela:  “O teu amor por mim é tão grande como aquela árvore.” “Mas ali não há árvore nenhuma!”, dizia ela. “Por isso mesmo!” – conversas entre o NININHO e a sua BEBÉ (ela tinha 19 anos, ele 32). Coisas hilariantes, além das cartas de amor ridículas, que se não o fossem não eram cartas de amor. “Amanhã passo por tua casa, mas é possível que não me reconheças porque posso ir disfarçado de vendedor de cautelas, ou de mão de vaca, ou de carroça por consertar. Não sei ainda.”

Fernando Pessoa demonstra um humor extraordinário que é uma das grandes revelações deste livro; uma vez escreve a Ophélia, numa viagem de comboio: “Bebé: mando-lhe o poema que escrevi entre as estações da Casa Branca e Barreiro A, terminando a inspiração, entretanto, na Moita. Este poema deve ser lido de noite e num quarto sem luz. Também, devidamente aproveitado, serve para fazer papelotes para as bonecas de trapo, para tapar as fechaduras contra o frio, os olhares e as chaves, e para tirar medidas para sapatos a pés que não tenham mais comprimento que o papel. Creio que estão feitas todas as recomendações para o uso. Não é preciso agitar antes de usar”.

 

Míope e vaidoso

Fernando Pessoa não gostava do seu corpo: era MÍOPE, precisava de 12 dioptrias e usava 3, e por ser muito vaidoso, não se queria ver com fundos de garrafa nos olhos. Às tantas diz: “Olhei-a de soslaio. E os desgraçados que usam óculos têm o soslaio imperfeito. Ainda mais aqueles que teimam em usar uma graduação inferior à sua por uma questão de vaidade que o próprio não entende porque a tem...”. Era pálido, desconjuntado, de peito chato, nariz em bico, corcunda e magro... “O artista deve ser belo e elegante. Que me restava a mim, que tinha nascido feio, senão tentar ser elegante?”. Daí os fatos muito bons feitos à medida, e as camisas que encomendava e não pagava, e os cobradores de fraque vermelho que por vezes o perseguiam pela cidade... Dizia que tinha “um temperamento feminino com uma inteligência masculina”.

 

As idades de Fernando Pessoa

“Eu tinha a tristeza de um homem de 50 anos e a solidão de um de 90. Pela média aritmética de ambos, eu tinha 70. Por outro lado, se somasse a idade de todas as pessoas que trazia dentro de mim, teria já vivido mais que os primeiros homens da Bíblia...” Numa outra vez escreveu:“Já sou velho. Nasci assim.”

Foi doente de EGAS MONIZ, que lhe receitou ginástica sueca! JÚLIO DE MATOS diagnosticou a um amigo “delírio de ciúme e mania de perseguição” e internou-o no Telhal. Em 1911 saiu um decreto em que o próprio doente podia requerer o seu internamento; e um dos medos que o persegue desde pequeno é enlouquecer... como a sua avó Dionísia, que vivia com eles.

 

Hábitos e rituais

Génio incompreendido, gostava de escrever de pé; e dizia “Não gosto de lápis novos. É como se estivessem despidos, sem ideias. Os lápis usados têm a madeira impregnada das minhas ideias anteriores, das que eles já tinham escrito e das que adivinham que eu escreveria”.

Ficamos a conhecer os seus hábitos, por onde passeava, e como eram conhecidos; a Praça Rio de Janeiro, por exemplo, actual Príncipe Real.

E lembramos o seu único livro publicado cá, que no próximo 1º de Dezembro completa 80 anos: a Mensagem, título que aprendi aqui neste magnífico livro da Sónia Louro e que afinal vem do latim “MENS + AGEN” que significa “O espírito actua”.

Não são esquecidos os vícios: o TABACO (chegava a fumar 4 maços por dia!) e o ÁLCOOL: “O senhor aguenta como uma esponja!” “Como uma esponja?! Como uma loja de esponjas, com armazém e anexo!”, brincava.

Ficou a famosa foto dele na taberna do Abel Pereira da Fonseca a beber aguardente, e que dedicou a Ophélia, com a legenda “EM FLAGRANTE DE-LITRO”... Sabe-se hoje que não morreu de cirrose, mas de pancreatite.

 

Homenagem

Esta obra, o primeiro romance biográfico de Pessoa, é uma homenagem enorme ao poeta maior da Lusofonia.

A partir de agora, podemos dizer com propriedade que esta vida se lê como um romance. Um romance urgente, que “primeiro entranha-se... depois... entranha-se ainda mais.” E ainda bem que assim é! Missão cumprida! Obrigado, Sónia, pelo teu trabalho!

 

Publicado em 18 Novembro 2014

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