Emiliano Fittipaldi autor de Avareza em entrevista para o jornal i

O “livro-reportagem” que despe as finanças da Santa Sé chegou agora a Portugal. O i falou com o autor, o jornalista Emiliano Fittipaldi
 “Obrigado a quem, dentro do Vaticano, com a sua coragem tornou possível este livro.” É assim que o jornalista do “L’Espresso” Emiliano Fittipaldi inicia os agradecimentos do seu livro, “Avareza”. E este “Avareza” fala deste pecado mas não é, certamente, um romance. Trata-se de uma investigação jornalística sobre as finanças da Santa Sé, publicada em novembro de 2015, que já valeu tanto ao autor como ao jornalista Gianluigi Nuzzi um processo do Vaticano por “divulgação de documentos oficiais”. Nuzzi e Fittipaldi arriscam uma pena de prisão entre os quatro e os oito anos. No livro, Emiliano relata as viagens em executiva, a gestão do património imobiliário, os gastos, os investimentos. “Um sistema económico doentio”, disse ao i. E aponta o dedo a dois cardeais que considera viverem “num luxo descarado”: Tarcisio Bertone e George Pell. Sobre o Papa, Emiliano crê que Francisco é um homem bem-intencionado mas, neste momento, “um homem só”. Entrevistámo-lo ontem em Lisboa, 3 de maio: Dia Internacional da Liberdade de Imprensa.

Nascer em Nápoles e ter contactado de perto com o crime organizado aguçou--lhe o sentido de investigador?
Sem dúvida. Em Nápoles, as relações entre mafiosos e a política italiana muitas vezes são ligações conhecidas. Muitas pessoas conhecem ou sabem o que se passa, mas isso não é falado publicamente nos jornais. Percebi logo que esse era um caminho que queria seguir: contar o que os outros não contavam. Acredito nesta missão do jornalista.

Tanto em Itália como em Portugal, a maioria da população é católica. Como reagiu a sua família ao vê-lo referido nalguns meios de comunicação como o inimigo número um do Vaticano?
(risos) Efetivamente houve muitos que se zangaram. A acusação que ouvi mais vezes, essa já da parte da sociedade, foi a de que só tinha escrito o livro contra o Vaticano para ganhar dinheiro. Os que me conhecem e os que lerem o livro sabem muitíssimo bem que este não é um livro contra a fé ou contra a Igreja. É um livro contra a corrupção dentro da Igreja. Nenhuma pessoa honesta e inteligente faz confusão entre as duas coisas. Na realidade, o livro deveria ajudar até a Igreja a ser mais transparente e mais honesta.

Pensa que as fontes que partilharam consigo os documentos o fizeram porque acreditavam no tal espírito de missão do jornalismo ou teriam outro tipo de interesse?
Para responder tenho de fazer uma premissa: todas as fontes usam os jornalistas, sempre. Há poucas que revelam dados por uma questão de moral ou de transparência. Aos jornalistas não deve interessar qual é o motivo que leva as fontes a passar a informação; o jornalista deve procurar saber é se a notícia é verdadeira e depois tem o direito e o dever de a publicar.

Como agiu neste caso em concreto?
Não usei apenas uma fonte porque aí seria um livro, apesar de verdadeiro, parcial. Neste caso, não foram as fontes que chegaram a mim, grande parte das fontes fui eu que as contactei. Contactei fontes de um grupo político interno do Vaticano, fontes que são inimigas deste grupo, fontes muito diversas, eclesiásticas e laicas que vivem dentro e fora do Vaticano, que me ajudaram a perceber este sistema económico doentio que envolve cardeais progressistas e conservadores.

Todos os trabalhos jornalísticos necessitam de que os factos sejam revistos e confirmados. Dada a sensibilidade do tema, teve um cuidado acrescido
Tento fazer isso sempre. Sou maníaco com o meu trabalho de revisão e nunca publico nada se não tiver a certeza de que o que estou a escrever é verdadeiro e que o posso demonstrar. Quando escrevo um livro deste tipo, não correria o risco de não ter provas. E nem uma linha foi desmentida. Julgo que trabalhei bem neste caso, por isso estou contente.

Começou por fazer a investigação no jornal, que resultou depois neste livro. Porquê esta decisão, não acha que um livro tem sempre uma credibilidade diferente?
Não. Acho que o trabalho jornalístico é sempre o mesmo. O livro permitiu-me contar o sistema como não poderia fazer no jornal, porque tinha mais espaço e mais páginas. 

Sendo um jornalista reconhecido à escala mundial, qual a sensação de dar entrevistas ao invés de fazê-las?
Estranha. Um aspeto de que gosto é poder explicar o meu trabalho a mais pessoas e também poder ser lido por mais gente. E também é curioso porque vejo quantos erros faz a nossa classe ao mudar algumas coisas que digo.

Houve alguma descoberta que o tenha impressionado particularmente?
Muitas. Uma das que me chocaram mais foi o património imobiliário da Santa Sé, que vale quatro biliões de euros e que não é usado para ajudar os pobres. Falo de casas no centro de Roma, Londres e Paris, onde vivem cardeais, e outras arrendadas a pessoas importantes que pagam rendas baixíssimas. Por exemplo, políticos italianos.

Quem são, para si, os religiosos claramente corruptos ou responsáveis por este sistema obscuro?
Considero que os dois protagonistas negativamente mais importantes do meu livro são o cardeal Tarcisio Bertone, que se tornou braço direito de Bento xvi em 2006, e George Pell, chamado por Francisco para tomar conta das finanças. O primeiro utilizou, entre outras coisas, dinheiro destinado a crianças doentes, quase meio milhão de euros, para remodelar o seu apartamento. Continua a viver nessa casa. Depois de o meu livro ter saído, o Vaticano abriu uma investigação para tentar perceber o que se passou, mas ainda não mudou nada. Não sei se estas notícias chegaram a Portugal, mas o mês passado obtive os documentos que provam que Bertone sabia perfeitamente de onde vinha o financiamento.

E o cardeal australiano George Pell?
Pell gastou muitíssimo dinheiro em voos em classe executiva, roupa feita por medida, salários de 15 mil euros mensais pagos ao seu administrador pessoal. Mas o aspeto mais grave é ter sido acusado por muitas vítimas de pedofilia australianas de ter minimizado os crimes e ter ajudado os sacerdotes. Houve muitas vítimas a falar mal dele à comissão australiana que investigou os casos. 

O Papa escolheu logo no início do seu papado sentar-se metaforicamente numa cadeira humilde. Como está Francisco a reagir a isto, na sua opinião? Está a fazer algo para mudar? 
Sim. Depois da publicação do meu livro, George Pell foi afastado e é possível que venha a ser substituído quando fizer os cinco anos de “mandato”. Seria uma mensagem muito mais forte se o Papa Francisco não esperasse e o mandasse já embora. Mas há mais pequenos sinais de reação ao que escrevi. Outro exemplo: a canonização dos santos, um escândalo incrível. Pensava que isso fosse gratuito, mas custa entre 400 a 600 mil euros. Francisco já escreveu uma nova regulamentação para diminuir os custos e tentar assim eliminar a corrupção que há neste negócio. 

Disse numa entrevista anterior ao “El País” que o Papa Francisco estava sozinho. Ainda pensa isso?
Sim, o que aconteceu depois de o livro ter saído demonstra isso. Ainda a semana passada, George Pell assinou um contrato de 3 milhões de euros, um contrato com a PWC que ninguém conhecia e que o secretário do Papa e o próprio Francisco tiveram de bloquear logo. Há lutas muito fortes entre os vários cardeais. E o Papa, que quer uma igreja mais pobre e para os pobres, é um dos pouquíssimos do Vaticano, se não o único, que querem este cariz.

Tem pena do Papa Francisco?
Não, porque é um Papa sozinho mas que também cometeu erros. É um Papa muito amado e mediático, mas que ordenou o meu julgamento injusto, um julgamento de liberdade de imprensa. O meu julgamento é incoerente com tudo o que o Santo Padre disse que queria fazer do Vaticano.

Se pudesse falar com ele relativamente ao seu processo, era isto que lhe diria?
Perguntaria porquê. Nos últimos três anos e no Angelus na Praça de São Pedro ele falou de transparência e condenou os cardeais que conduziam carros de luxo, admitiu que também há corrupção no Vaticano. Eu sou jornalista e posso denunciar isto, como fiz. 

Por outro lado, houve pessoas que acham que esta informação pode ser positiva para o futuro da Igreja?
No Vaticano. ninguém. Fora do Vaticano recebi muitas mensagens de homens da Igreja a agradecer e a pedir para alargar a investigação além do Vaticano. Mas pediram para ficar anónimos com medo da censura. No pontificado do Papa Francisco, os mais corajosos dizem o que pensam, mas em silêncio. 

Haverá uma “Avareza ii”?
Não sei, depende das informações. Mas se houver possibilidade e informações, não terei medo de publicar. 

Sentiu-se sozinho durante a investigação e durante o processo?
Sim, nenhum ministro, nenhuma instituição, ninguém da política nacional me disse uma única palavra. 

Se o seu processo for arquivado e o Papa o agraciar, como reagirá?
Certamente não agradecerei, só os culpados o fazem. Só fiz o meu trabalho. Se for condenado, há um acordo entre Itália e a Santa Sé e pedirei para ser extraditado. Mas estou bastante tranquilo porque na lei italiana há liberdade de imprensa em Itália, que não há no Vaticano. Só um juiz completamente louco poderia ordenar a minha prisão.

Publicado em 6 Maio 2016

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