Entrevista exclusiva a Clóvis Bulcão



O que o levou a escrever um romance com um tema tão inaudito na história luso-brasileira – o sequestro de uma cidade?

Foram dois os meus objetivos nesse livro: narrar um facto pouco conhecido e discutir algo que aflige muitas cidades na América Latina, o pode paralelo dos traficantes. Ao estudar a invasão do Rio de Janeiro, em 1711, ficou claro que havia algo fora do comum. Faltou pólvora para combater os invasores franceses, mas ela existia em abundância na cidade. Fui estudar a questão da pólvora no Brasil-colónia e descobri que ela era monopólio da Coroa portuguesa. Por conta da ineficiência estatal, outro tema bem comum nos dias de hoje, havia tráfico do produto. Hoje, o Rio de Janeiro sofre com os traficantes de drogas e armas, no passado eram outros os produtos comercializados pela bandidagem. A única coisa que não mudou foi o espaço geográfico, os morros cariocas.

 

Qual foi a personagem que mais o desafiou e cativou?

O corsário francês René Duguay-Trouin é um dos maiores marinheiros de todos os tempos. Hoje, ele só é conhecido em Saint Malo, França, sua cidade natal. Nos primeiros anos do século XVIII, René foi o terror do Canal da Mancha. Causou grandes prejuízos aos ingleses. Chegou a ser capturado mas fugiu de forma cinematográfica de seu cativeiro. Quando os portugueses encontraram ouro no Brasil, ele resolveu roubar o carregamento anual do rico metal. No Rio de Janeiro, apesar da entrada da baía de Guanabara ser bem estreita e guarnecida por dois fortes, Duguay-Trouin conseguiu penetrar com uma frota de quinze barcos de guerra. O mais notável, as defesas da cidade nem deram conta do que estava acontecendo. O fim do reinado de Luis XIV, de 1711 até 1715, foi financiado pelas riquezas pilhadas por René no Brasil.

 

Qual foi a sua fonte de inspiração?

 Meu primeiro livro, Brasil a Quarta Parte do Mundo, tratou da primeira invasão francesa da baía de Guanabara. Em 1555, o vice-almirante francês Nicolas Durand de Villegaignon, em uma trama articulada com o calvinista João Calvino, resolveu que o Novo Mundo não poderia ser um monopólio ibero-católico. Com apoio secreto do governo francês, resolveram colonizar a baía de Guanabara. A tentativa fracassou, mas o legado da presença francesa no Brasil deixou marcas profundas na cultura ocidental. O escritor Michel de Montaigne escreveu um ensaio sobre os índios, e os livros de dois membros da colónia francesa, Jean de Lery e André Thevet, fizeram grande sucesso. Baseado nessa literatura surgiria o conceito do bom selvagem de Rousseau. Já a invasão de 1711 ajudou de alguma maneira a eternizar a fama do Rei Sol. 

 

Como historiador, que outros temas poderiam ser explorados entre Portugal e Brasil a nível ficcional?

O escritor paraibano Ariano Suassuna gostava de dizer que Miguel de Cervantes ter-se-ia inspirado no rei Dom Sebastião para escrever o Quixote. Acho que não existe personagem mais rico no imaginário luso-brasileiro do que o rei Desejado. Em minha última passagem por Lisboa, com a ajuda de meu amigo Pedro Canais o escritor, fiz um levantamento bibliográfico sobre Dom Sebastião. O sebastianismo já rendeu muitos estudos, mas acho que o tema deve ser mais popularizado entre os povos de língua portuguesa.

 

Acredita que os romances históricos são uma forma de reaprender a história  ou a fantasia poderá, em algum caso, atrapalhar os factos?

Com o apoio da historiadora Mary del Priore escrevi a Pequena Enciclopédia de Personagens da Literatura Brasileira. Acho que a literatura é muito pedagógica para entendermos o passado. Em geral, nos livros de História os sentimentos mais humanos, como dor, fome, tristeza, etc, não são levados em conta. Por exemplo, o fim da escravidão no Brasil, 1888, foi muito positivo. Mas ao mesmo tempo trouxe enorme sofrimento para milhares de libertos. Os ex-escravos ficaram sem nenhuma perspetiva e abandonados à própria sorte. No Brasil nenhum livro didático conta isso. Para entendermos o tamanho desse drama humano só temos uma saída, a literatura.

 

Quais são as 3 personagens históricas que tanto portugueses como brasileiros devem conhecer a fundo, além de Padre António Vieira (objeto de estudo na célebre biografia escrita por você)?

 Além de Dom Sebastião, a Casa de Bragança deveria ser vista com mais carinho pela cultura luso-brasileira. A família de Dom João IV, especialmente em sua filha Catarina, foi fundamental para os destinos da Inglaterra. No Brasil ainda hoje a figura de Dom João VI é motivo de chacota, mas ele foi dos mais hábeis durante a Europa Napoleônica.

 

Em Portugal a história e a cultura literária brasileiras ainda não são tão divulgadas como deveriam, lamentavelmente. Tirando a música e o mundo televisivo, claro. Muitos portugueses sabem quem é o Caetano Veloso, mas poucos sabem quem foi Machado de Assis ou João Guimarães Rosa. Isso acontece no Brasil ou está mais mitigado?

Infelizmente, no Brasil artistas de televisão e cantores são muitos mais populares do que escritores. A rica indústria do livro brasileira prefere se apoiar nas vendas para o governo federal, o maior comprador de livros. Além do mais, os livros que mais vendem são os títulos importados. Livros que, em geral, são casados com a indústria cinematográfica. No Brasil, uma ex-colónia, os produtos importados sempre são mais bem vistos. Portanto, o escritor brasileiro, na média, tem que lutar muito por algum espaço no setor cultural. Apesar de termos hoje um país mais justo, a educação ainda é um dos nossos maiores desafios.

 

Que mensagem tem para os leitores portugueses?

Sempre que visito Portugal consigo perceber em cada situação o ADN do Brasil. Em algumas localidades de Lisboa sinto-me muito em casa, pois são muito parecidas com bairros do Rio de Janeiro. Até o cheiro é o mesmo. O leitor de O Pirata do Rei na terra do Sol com certeza vai perceber isso. Os portugueses deixaram no Brasil suas impressões digitais. A trama do romance é de certa forma universal, os factos que se sucedem na cidade após a chegada do invasor poderiam ter acontecido em qualquer parte do mundo. Mas alguns detalhes, tanto para o bem quanto para o mal, são típicos do mundo luso-brasileiro. Assim sendo, o leitor português vai reconhecer-se apesar do romance se passar noutro tempo e numa terra distante.

Publicado em 17 Dezembro 2014

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