Entrevista: Robin Hobb no Deus me Livro
Entrevista: Robin Hobb
Há quem olhe para George R.R. Martin como o escritor maior da fantasia moderna, ainda que este tenha deixado os leitores aos papéis trocando, pelo menos no que às Crónicas do Gelo e do Fogo dizem respeito, a solidão das páginas em papel pelo mainstream televisivo. Há, porém, uma escritora que vai disputando ombro a ombro com Martin o lugar mais alto do pódio da fantasia, e que no BI vai assinando como Margaret Ogden. Talvez a conheçam como Robin Hobb, a autora da saga dedicada a Fitz Cavalaria que teve início há, parece incrível, quase um quarto de século. O Deus Me Livro esteve à conversa com a autora no Festival Bang, no qual teve o estatuto de convidada de honra.
20 anos e 16 livros depois – na versão original -, chega ao fim a história de FitzChivalry Farseer – Fitz Cavalaria na versão portuguesa -, um filho bastardo fora do comum. Foi assim como ver sair um filho de casa?
Estas foram personagens com as quais eu vivi nos últimos 25 anos. Escrevi outros livros e criei outras personagens pelo meio, mas estas foram as que me acompanharam durante mais tempo. Ao terminar este arco houve um sentimento de satisfação mas, ao mesmo tempo, de arrependimento, uma mistura de ambos.
Quando começou a escrever o primeiro livro de Fitz, tinha já a ideia de que se iria estender, para já, durante duas décadas?
Quando comecei sabia apenas que iria escrever uma trilogia, desconhecia que iria acabar por ter tantos desenvolvimentos e histórias paralelas.
Poderemos colocar uma pedra sobre o assunto ou será um daqueles casos bondianos de never say never? Até porque li uma entrevista onde falou de que sentiu que já tinha terminado o livro por duas vezes, mas que acabou depois por sentir necessidade de regressar a este universo. Ficou também aqui uma ponta solta no final?
Neste caso penso que posso dizer que terá sido o último fragmento daquela história. Mas há sempre uma outra história para contar. Toda a história acaba quando uma outra começa.
Abelha é uma personagem que começa por ser uma enfermidade, alguém que nasceu por milagre e que só por um milagre maior poderá viver mais do que uns dias, olhada como uma idiota por toda a gente. No entanto acaba por se revelar uma miúda exemplar, que só por si mereceria uma trilogia.
É uma personagem fascinante, com o seu próprio caminho a percorrer. Seria fácil continuar a escrever livros sobre isso, mas irei eu seguir esse caminho? Não sei dizer, é a minha resposta sincera.
Tal como nos livros de George R. R. Martin, os seus personagens não têm uma carta-branca que lhes permita alcançar a imortalidade. Como é ter nas mãos o destino de personagens que viu crescer? É ter um grande poder nas mãos.
Sim e não. Alguns escritores têm o controlo absoluto dos seus personagens e das suas histórias. As personagens fazem aquilo que lhes é ordenado. No meu caso, por vezes as histórias seguem um caminho diferente, e as personagens fazem algo de que não estava à espera, deixando-me a pensar: isto seria algo que esta personagem não faria. Mas a história avança dessa forma inesperada, muitas vezes desembocando num final que não era aquele que tinha idealizado.
Esse aspecto de mudança e de inesperado é algo que faz parte da fantasia moderna. Se antigamente havia uma clara definição e distinção entre bons e maus, hoje em dia a fronteira é bem mais ténue.
Sou muito crítica em relação aos livros com finais felizes, que acabam por levar a narrativa ao estado inicial das coisas. Como a princesa raptada, que é salva e que se volta a sentar no trono, fazendo com que todos vivam felizes para todo o sempre. Não retiro muita satisfação deste tipo de histórias.
Pode dizer-se que neste momento está, pelo menos para os seus fãs, num pedestal reservado aos grandes autores de fantasia. Se recuarmos atrás no tempo, quando escreveu “Harpy’s Flight”, estava a trabalhar como empregada de mesa, a tomar conta de filhos e a cuidar de uma quinta. Isto enquanto o seu marido estava fora em alto mar. Nunca pensou em desistir da escrita?
É sempre difícil ser escritor, de alguma forma. Há que balançar entre o tempo que se quer ter para escrever e o tempo que é necessário para fazer coisas com a família e os amigos. Sem contar com as horas que se têm de dedicar a pagar a renda e as contas do supermercado. É sempre um desafio. As pessoas fazem coisas extraordinárias nos seus tempos livres, seja a costurar uma manta ou a construir uma secretária. Escrever é algo assim. É chegar à noite e decidir que em vez de ir ver televisão se vai dedicar tempo à escrita. Começa sempre desta forma.
A magia é inseparável do universo fantástico, mas no seu caso esta surge como uma adição, algo destrutivo, mas ainda assim impossível de travar mesmo que se saiba destruir tanto a mente como o corpo.
Funciona como qualquer poder que se tenha. Vemos muitos casos em que os desportistas continuam as suas carreiras com grandes lesões, ou de lutadores de boxe que se destroem a si próprios antes de conseguirem parar a tempo. Porque é dessa forma que retiram o seu sentido de poder, de status. Em quase todas as carreiras pode ir-se ao extremo, trabalhar demasiado. Vemos pessoas que bebem demasiado, ou que tomam drogas para continuarem no ritmo acelerado. Vemos este apelo pela destruição em toda a parte.
A figura do bobo foi também fundamental para que esta saga fugisse aos habituais livros de espada e feitiçaria. Dá a ideia de que no início seria uma personagem quase descartável, mas que acabou por ganhar o seu espaço até se tornar numa personagem central, por vezes quase shakespeariana.
Disseram-me isso antes, mas não foi algo intencional da minha parte. Fitz começou como uma personagem que iria desempenhar um papel longe do centro do palco, mas acabou por se tornar cada vez mais e mais importante. Foi um pouco com aquilo que disse antes, de olhar para as personagens e de lhes dar espaço para crescerem. No caso de Fitz acabou por mudar de forma inesperada o curso da história.
Apesar de ter um bom coração, Fitz está constantemente a colocar em perigo a vida dos outros. É uma personagem muito dada à melancolia, que vai sofrendo transformações psicológicas ao longo da saga.
Sim, talvez por podermos partilhar os seus pensamentos a quase toda a hora. Não é aquele herói que está certo de que tudo aquilo que faz é para o melhor. Vive num conflito entre aquilo que gostaria de fazer com a sua vida e o que vê como um dever à sua família, o que deve fazer em nome de um bem maior. E isto é algo que vemos em muitas pessoas. Nem sempre podemos fazer tudo o que queremos, acabamos quase sempre por fazer o que julgamos que deveríamos fazer. Mesmo que não seja aquilo que nos faz felizes em termos pessoais. Ao escrever na primeira pessoa, o escritor partilha isso com o leitor. Depende da profundidade a que o escritor quer que o leitor entre na cabeça das suas personagens.
É impossível imaginarmos a fantasia sem dragões?
Claro que sim.
Eles parecem estar em toda a parte.
Sim, podem estar. Há alguns grandes livros de fantasia onde não os há. Mas é uma criatura muito poderosa para se trazer para uma história: a ideia de a humanidade ter um adversário tão inteligente, tão arrogante e no topo da pirâmide alimentar. Tal como nós.
A certa altura temos quase uma Irmandade do Anel, com Fitz, Enigma, Lante e Perseverança a aventurarem-se através das pedras. O que devemos a Tolkien?
Quando li “O Senhor dos Anéis” senti que nunca havia lido nada assim. Depois disso não poderia ir a uma livraria e escolher um outro livro de fantasia que tivesse uma tamanha profundidade, inteligência. Simplesmente não se encontrava isso no género. Foi um ponto de viragem na minha forma de olhar para o género da fantasia. Até então tinha lido muita ficção científica, muita literatura pulp – Tarzan, The Mastermind of Mars -, mas nada que tivesse levado as suas personagens tão a sério, ou que tivesse pintado o seu mundo de uma forma tão completa como o fez Tolkien.
Para quem já anda nisto há muitos anos, como é ver a fantasia ter um lugar de destaque na literatura actual? E como chegámos até aqui?
Já vi géneros literários ascenderem e outros caírem. Houve um tempo em que as livrarias estiveram cheias de livros de ficção científica ou de terror. Ou, a certa altura nos Estados Unidos, de westerns. Mas o que creio que se passou foi o facto de as pessoas perceberem que a fantasia poderia ser vista como uma história séria e bem contada para adultos, e não apenas para miúdos. Qualquer género pode ter uma história interessante para contar.