Fernando Pessoa, O Romance - Crítica em planetamarcia



“Fernando Pessoa, O Romance” tem uma intensidade para a qual eu não estava preparada. Por isso a leitura foi demorada e algo sinuosa.

Impossível, a meu ver, não admirar Fernando Pessoa, pelo génio e pelas tão humanas falhas. Quando alguém que se admira volta dos mortos para nos falar através de um livro, o medo remete esse livro para outra ocasião. Dá-se-lhe um tempo, deixa-se respirar, eu própria também respirei, confesso, e preparei-me. Preparei-me, já consciente do que me esperava, para uma leitura única, poderosa, absorvente e, obviamente, perturbadora.

Admiro Sónia Louro por esta conquista, pela forma como se ofereceu para receber Pessoa, e como me convenceu tão bem de ser ele próprio a escrever este livro. Os louros a Louro pela coragem de misturar citações de Pessoa com o seu próprio texto, por ter transformado tudo com habilidade, obtendo um resultado estranhamente fantástico. Estranhamente porque, parando para pensar no que acabei de escrever, o resultado seria no mínimo estranho, hediondo ou tenebroso indo mais longe, mas na verdade o resultado é brilhante.

Fernando Pessoa foi, entre tantas coisas, astrólogo e médium. Dei por mim a pensar se, no meio das suas pesquisas, Sónia Louro, não terá descoberto um portal, uma dimensão, um qualquer canal de comunicação através do qual Pessoa lhe foi segredando e ditando este livro.

É que está aqui um trabalho de mestre. A escrita elaborada e por vezes complexa, que aprecio apesar de não ser a minha preferida, adequa-se ao formato e resulta muito bem.

Mas imagino o caminho tortuoso da escrita. A pesquisa exaustiva, as decisões de como e onde colocar as centenas de expressões e citações retiradas da imensa bibliografia. Imagino também a autora a padecer de sintomas “Pessoanos”, noites de insónia, medo de enlouquecer, receio de não chegar ao fim da obra. Mas chegou. E bem. Imagino que com um monte de gente na cabeça, mas com o prazer da conclusão, de assistir ao resultado do esforço, de saber que vai ser lida. Ou melhor dizendo, que Pessoa vai ser lido e admirado por mais leitores, que terão neste livro um acesso privilegiado à vida de um Homem que todos devem conhecer, com pormenores curiosos e cómicos, com relatos sérios e sofridos de um homem que queria deixar a sua Obra a todos nós.

A sua mente perturbada, os traumas da infância, as inseguranças, os excessos toldaram-lhe a visão de si próprio. Amava a arte e a escrita mas nunca sentiu que tivesse capacidade de concluir o tanto que iniciou. Deixou que os seus heterónimos fossem melhores, tivessem mais talento, deixando-se ficar na sombra de um mar de gente que o acompanhava sempre, ofuscando-se a si próprio, receando sempre o contacto social, querendo estar só e nunca conseguindo.

Fernando Pessoa, na primeira pessoa, conta-nos tudo neste livro.

 

“E eu, o que era eu? Havia anos que vaticinara o aparecimento de um supra-Camões, referindo-me a mim sem o mencionar. Vieram outros para me ajudar nesta empresa. Veio o mestre Caeiro, o doutor Ricardo Reis, o Engenheiro Álvaro de Campos – que o Almada Negreiros até já achava melhor do que eu. Até o guarda-livros Bernardo Soares. Vieram mesmo entidades do Além. E o facto não provado, mas que tudo isto parecia provar, era que todos eles eram melhores do que eu.

- “Nada fui, nada ousei e nada fiz” – atirou Bernardo Soares.

As palavras do guarda-livros definiam-me melhor do que as minhas, embora as palavras dele e as minhas fossem as mesmas, uma vez que ele, ao contrário dos outros, era uma simples mutilação da minha personalidade.

Eu ouvia vozes dentro e fora da minha cabeça e por vezes via os corpos a quem elas pertenciam. (…). Todos eles eram eus.” (Págs. 164 e 165).

“Na Brasileira, no Martinho, era eu quem mais ouvia e menos falava, talvez porque o meu desejo mais profundo fosse falar largamente para o mundo todo através do que escrevia.” (Pág. 267)

“Conseguia principiar muito do que tinha na cabeça, mas não havia nada que conseguisse acabar. (…) Não havia homem com vontade mais férrea do que a minha para não fazer nada. Tinha a arca cheia de papéis, mas a cabeça ainda mais cheia de projectos e isso fazia-me sentir deslumbrado sobre a capacidade do cérebro humano, como podia guardar num espaço tão exíguo o dobro ou o triplo dos projectos literários que em papel a minha arca continha? (…) Uma vida não foi tempo suficiente para acabar nada! (…) Escrevia isto e escrevia aquilo, porque por pouco que fosse capaz de agir, era ainda menos capaz de não escrever. Precisava fazê-lo porque era preciso a alma para poder suportar a realidade de ter de viver e de agir, por pouco que fosse, e de ter de me conformar que havia no mundo outra gente. A minha sensibilidade repudiava a acção, contudo, simplesmente respirar, obrigava-me a agir.” (Págs. 376 e 377).

Publicado em 29 Dezembro 2014

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