O Império Final - Crítica em Morrighan
Fantástica é muitas vezes alvo de algum preconceito ou desvalorização, existe ainda quem insista em trazer aos seus cidadãos obras de uma qualidade inegável que fariam corar muitos mestres ditos eruditos. Não que tenha alguma coisa contra estes últimos, existem uns quantos que admiro e uma coisa não influencia a outra, mas quando me vejo perante um livro como O Império Final, não posso deixar de pensar que quem desdenha de toda a Literatura Fantástica só pode ser um tolo.
A forma como uma história chega até nós pode tomar várias formas. De um romance romântico, de um poema, de um romance policial ou outro género, mas é muitas vezes nos meandros da fantasia que se encontram as melhores metáforas, as maiores lições sobre a luta pelos ideais de cada um. Se Joseph Campbell estudou o Monomito, Jornada do Herói, é certo que muitos autores se têm atarefado a criar bons enredos que a ilustrem, adicionando com perícia componentes políticas, religiosas e ideológicas. Brandon Sanderson, uma estreia para mim, não me deixou dúvida nenhuma quanto à sua qualidade enquanto criador de um universo que consegue ser tão completo quanto exaustivo, sem nunca aborrecer, sem nunca amortecer a leitura.
O Império Final é uma obra que dificilmente deixará alguém indiferente. A estória que Sanderson nos conta começa de mansinho, mas logo com uma imagética e visão muito fortes. Se o início nos deixa curiosos, essa ansiedade miudinha, que se apodera de nós quando gostamos e queremos descobrir o que se segue, não mais nos larga até ao final. Consegue mesmo causar algum sofrimento nesse sentido - quem não tiver disponibilidade temporal para o ler de boas assentadas de cada vez vai sofrer por ter de parar a leitura.
A narrativa está dividida por partes, em que cada parte contém vários capítulos, todos eles terminados com citações que só com o decorrer da leitura poderemos enquadrar com a realidade do Império Final. Com o passar de cada capítulo, correspondente a fases de transição da história bastante específicas, as personagens ganham cada vez mais vida, cada vez mais consistência e espaço na mente e espírito do leitor. As empatias em relação a algumas poderão oscilar. Se no início Vin é aquela personagem feminina que admiramos por lutar pela sua vida, existirão partes em que o autor quase nos faz duvidar dela, apesar de no fundo não acreditarmos que ela pudesse realmente mudar tanto.
Já Kelsier é aquele personagem que nos deixa de coração nas mãos. O herói que muitas vezes é visto como um louco e até anti-herói pelos seus amigos mais chegados. De toda a palete de protagonistas, o bando de Kelsier merece destaque, mas mais ainda merece o terrisiano Sazed. O conceito dos Guardiães de Terris está fascinante. Tornados eunucos pelo Senhor Soberano, são pessoas vistas com alguma temeridade, mas de uma essência fascinante. São eles os portadores de tudo o que possa haver memória, desde lendas a religiões, línguas perdidas a gentes esquecidas.
Em relação ao enredo, este é tão rico que descrevê-lo será sempre redutor. Temos uma sociedade estratificada em que existe o Senhor Soberano, os seus Inquisidores e Impositores, muitos deles alomânicos. Temos também a nobreza, os desgraçados dos skaa e os bandos de ladrões skaa. Enquanto a nobreza está dividida em Grandes Casas de famílias poderosas e ricas, os skaa são meramente escravos, violentados, desprezados e vistos como seres inferiores em todos os sentidos - físico e intelectual.
A forma como a trama está construída encaminha-nos através de uma rebelião sem par, que passa por uma evolução das personagens enquanto seres humanos num mundo sem esperança. À medida que avançam com o plano louco de Kelsier, mais dúvidas surgem, mais descrentes ficam, mas se há coisa que Brandon Sanderson mostrou é que é perito em surpreender o leitor, muitas vezes quando menos esperamos. A sua escrita não tem paninhos quentes, mas contém sempre uma espécie de ternura e esperança que vicia o leitor.
Mesmo entre a desgraça, entre a desesperança toda, existe espaço para os sentimentos surgirem, crescerem e provarem que é na capacidade de amar o próximo e de lutar que se pode fazer uma verdadeira diferença. É essa chama da esperança, mesmo no meio de toda a tragédia, é esse sentimento de lealdade e comprometimento com o que encaramos, que torna esta obra única e estas seis centenas de páginas fáceis de ler num fôlego.
Uma estória fantástica, um universo que marca, um escritor extraordinário. Dos melhores livros de Literatura Fantástica que já li. Adorei.