O Império Final opinião no Refém das Letras
O primeiro livro da saga Mistborn revelou-se uma ambígua surpresa. Era certo que aguardava um bom autor, não fosse Sanderson o prestigiado nome a quem calhou o testemunho de terminar uma das mais famosas sagas da fantasia literária. Um bom autor como Sanderson, porém, teria de criar uma obra tão magnífica em conteúdo típico do seu género como um enredo significativamente sólido e plausível para se destacar. É nesta dupla faceta que O Império Final assenta, daí a ambiguidade patente – que, neste caso, faz todo o sentido e merece aplausos.
De facto, penso que é aqui que recai o sucesso desta leitura. Existe uma conjugação bem idealizada entre o conteúdo fantástico e o enredo, tornando a aproximação a este mundo de Mistborn um processo confortável e deveras aliciador. Comecemos pelo enredo. À partida, contempla-se uma sensação distópica, como uma decadência generalizada de valores e acontecimentos. Contudo, uma centelha de luz aparece como uma estrela subtil, cuja identidade e propósito são desconhecidos. É, ainda assim, uma subtileza sólida, inextinguível, como algo que sabemos existir mesmo quando não está lá. E assim surge, pouco a pouco, a personagem de Kelsier e o ponto de mudança num regime secular de subjugação e tormento. Kelsier incendeia os espíritos do povo e a ira de nobres para, assim, subverter a actualidade. Posto isto, é acrescentado um factor deslumbrante do fantástico: a alomância. Rodeado de misticismo e conceptismo muito próprios, Sanderson sustentou ponderadamente um factor que encanta o leitor, mas que ao mesmo tempo é extremamente relevante para compreender o rumo que a história toma.
O tema da alomância é, portanto, muito precioso. Entrar em detalhe arruinaria a experiência que um futuro leitor teria. Contudo, existem certos aspectos nesta criação que merecem ser destacados. O primeiro é o facto de, dentro da inverosimilhança, a alomância ser algo verosímil. Ou seja, no fictício cenário que aqui é colocado Sanderson conseguiu elaborar um conceito bem justificado, tecido com lógica e até intrincado com algumas noções das leis físicas que regem o Universo. O segundo ponto relaciona-se com a metáfora patente na alomância e que é um toque belo no meio da brutalidade que por vezes toma, demarcando que a força está em nós mesmos, mesmo que envolta em brumas. Basta procurá-la e deixá-la fluir. O terceiro ponto relaciona-se com a qualidade acrescida que a alomância oferece à experiência da leitura, tornando-a visual, dinâmica e estimulante, quase como se o leitor sentisse na pele aquilo que a personagem sente ao recorrer a esta força. Finalmente, é certo que neste primeiro volume a alomância gera entusiasmo suficiente para se tornar brilhante, contudo carece de muitas explicações essenciais que, espero, sejam reveladas posteriormente.
Quantos às personagens, sem dúvida que temos dois protagonistas inicialmente contrários em personalidade que, ao encontrarem uma linha comum, se moldam com características mútuas. Falo, obviamente, de Vin e Kelsier. Se, por um lado, Vin é a representação da fragilidade e inocência, Kelsier é o símbolo da força e da espontaneidade. Vin, contudo, tem mais que à vista aparenta. Dotada de uma inteligência e poderes invulgares, a sua débil aparência é um disfarce inconsciente que conduz às maiores imprevisibilidades e surpresas que podemos encontrar nesta obra. É notório o crescimento da maturidade de Vin, à medida que toma consciência do que é o mundo em que vive e como realmente funciona. Kelsier toma um papel crucial nesta modelação. Ainda assim, é clara a noção que o íntimo de Vin está repleto de inseguranças e dúvidas, sem a resolução das quais ela não poderá avançar. Kelsier, pelo contrário, desde o começo ao fim demonstra plena confiança, audácia e pouca sensatez. Na sua convicção traça um caminho definido, sempre munido de um sentido de humor e de uma personalidade descontraída e amigável que por vezes ameniza a seriedade do assunto que trata. É, sem dúvida, a figura mais cativante e apaixonante, que por seu turno apaixona o leitor e o torna sensível ao tema da revolta e da importância de reavaliar os paradigmas vigentes. Além disso, o passado de Kelsier está envolto numa certa obscuridade que o torna ainda mais intrigante. As restantes personagens dispersam-se por um grupo muito rico e diverso, diversidade essa que contribui para assegurar a transmissão da mensagem e ser ao mesmo tempo o mote para a missão. De facto, são as diferenças que as une e lhes dá a força necessária para enfrentar um mundo excêntrico com a soberania como verdade absoluta.
Neste sentido, a certa altura a obra toma contornos fortemente estratégicos, políticos e ideológicos. Nestes momentos, a acção cai inevitavelmente para dar lugar a reflexões aprofundadas e destrinçar questões fundamentais aos objectivos traçados. Não deixando de ser partes do livro extremamente importantes para a compreensão do leitor, por vezes a mística que já estava recalcada desvanece-se e o contributo do fantástico perde a sua força. Contudo, sendo o primeiro livro de uma saga, haverá bastante espaço para apostar mais nessa vertente nas próximas narrativas, tornando-se claro que aqui o objectivo é introduzir o novo mundo e a complexidade existencialista que lhe é inerente.
Entra as apostas de Sanderson que mais me surpreenderam também está a ténue linha que existe entre o bem e o mal. Ao escapar a essa bipolaridade, Sanderson aproximou ainda mais este universo do mundo real. As personagens não são meras abstracções éticas. São seres com vida, cujo passado moldou aquilo que são hoje e onde se podem encontrar pedaços que os conduzirão para o eu do amanhã. Como no mundo real, o bem e o mal são uma quimera. A vontade de poder é que tende a balança mais para um lado que outro, e será nesse equilíbrio que recairá a chave.
Com uma concepção arrojada, personagens consistentes e uma narrativa que prende do início ao fim, O Império Final ambiciona assim a tornar-se um dos prólogos de saga mais promissores. A originalidade e genialidade de Sanderson converteram-se numa avassaladora experiência literária - e acima de tudo reflexiva - que, espero, seja apenas um vislumbre daquilo que está para ser revelado, nomeadamente quanto ao conteúdo fantástico. Que venha o próximo.
Neste sentido, a certa altura a obra toma contornos fortemente estratégicos, políticos e ideológicos. Nestes momentos, a acção cai inevitavelmente para dar lugar a reflexões aprofundadas e destrinçar questões fundamentais aos objectivos traçados. Não deixando de ser partes do livro extremamente importantes para a compreensão do leitor, por vezes a mística que já estava recalcada desvanece-se e o contributo do fantástico perde a sua força. Contudo, sendo o primeiro livro de uma saga, haverá bastante espaço para apostar mais nessa vertente nas próximas narrativas, tornando-se claro que aqui o objectivo é introduzir o novo mundo e a complexidade existencialista que lhe é inerente.
Entra as apostas de Sanderson que mais me surpreenderam também está a ténue linha que existe entre o bem e o mal. Ao escapar a essa bipolaridade, Sanderson aproximou ainda mais este universo do mundo real. As personagens não são meras abstracções éticas. São seres com vida, cujo passado moldou aquilo que são hoje e onde se podem encontrar pedaços que os conduzirão para o eu do amanhã. Como no mundo real, o bem e o mal são uma quimera. A vontade de poder é que tende a balança mais para um lado que outro, e será nesse equilíbrio que recairá a chave.
Com uma concepção arrojada, personagens consistentes e uma narrativa que prende do início ao fim, O Império Final ambiciona assim a tornar-se um dos prólogos de saga mais promissores. A originalidade e genialidade de Sanderson converteram-se numa avassaladora experiência literária - e acima de tudo reflexiva - que, espero, seja apenas um vislumbre daquilo que está para ser revelado, nomeadamente quanto ao conteúdo fantástico. Que venha o próximo.
Publicado em 4 Fevereiro 2016