O Poder - Opinião no Deus Me Livro
O que aconteceria se fossem as mulheres a mandar no mundo, alterando a relação de poderes instituída em todo o globo terrestre? É esta a pergunta que Naomi Alderman deixa no ar em “O Poder” (Saída de Emergência, 2018), um exercício de ficção especulativa com alma incendiária que levou para casa o Bailey’s Women’s Prize para Ficção em 2017.
As primeiras manifestações de mudança acontecem com as adolescentes que, paralelamente à descoberta do corpo e à forma como a sociedade dispõe dele, encontram em si um poder semelhante aos que encontramos apenas nos livros de super-heróis: a habilidade de magoar ou matar alguém através de descargas eléctricas, emitidas com as pontas dos seus dedos. Algo possível devido a uma “faixa de músculos estriados sobre as clavículas das raparigas, a que deram o nome de órgão da electricidade, ou meada, por causa dos seus fios retorcidos“.
Uns apontam a bruxaria, outros um estranho vírus, há até quem arrisque tratar-se de um veneno, mas não demorará muito até que filmagens de raparigas a electrocutarem rapazes inundem a Internet, numa demonstração de poder que, a certa altura, começa a ser passada também das adolescentes para mulheres mais velhas. A mudança no paradigma sexual é brutal, com os rapazes a serem metidos em escolas exclusivamente masculinas para sua própria segurança. Ainda assim, a maioria acredita que, dentro de pouco tempo, será encontrado um antídoto que permita restabelecer o (des)equilíbrio de forças anterior.
A mudança é, porém, inevitável, com Naomi a operar um twist onde a violência é, agora, exercida no feminino: as vítimas de abusos sexuais viram-se contra os seus atacantes; as revoluções acontecem um pouco em todo o mundo; as mulheres oprimidas apontam para uma intervenção divina, e a religião assume-se agora como o primeiro poder -ainda que a fé se distribua por diferentes ídolos consoante a religião; os exércitos tornam-se exclusivamente femininos, aproveitando uma raiva que não parece capaz de ser contida; não faltam também as drogas e a pornografia, universos dominados e transformados em moeda pelos poderes instituídos.
Naomi Alderman constrói este romance distópico e provocativo em redor de quatro personagens: Allie, uma rapariga adoptada e abusada sexualmente, que se irá reinventar sob o nome de Mãe Eva, a líder de uma comunidade onde não há lugar para homens; Roxy, uma das primeiras raparigas tocadas pelo poder, filha de um boss do crime londrino; Tunde, um bem-parecido jornalista nigeriano, ao estilo de um youtuber, que abandona a escola para percorrer o mundo filmando as suas revoluções; e Margot, uma política americana em ascensão, uma mulher de meia-idade com poucos escrúpulos, que cedo percebe que o poder é a melhor forma de domínio.
É também curiosa e muito divertida a forma como a autora apresenta este romance, situando-o como uma novela histórica que teve lugar alguns milhares de anos no futuro, escrita por um tal de Neil Adam Armon que chega a trocar cartas com a própria Naomi.
Sempre com a religião como pano de fundo, “O Poder” oferece múltiplas leituras, sendo uma delas o facto de a essência humana, seja no masculino como no feminino, estar destinada à sede de poder e à vontade de domínio. Naomi não dá respostas definitivas à pergunta “Porque é que as pessoas procuram e abusam do poder?”, mas acaba por oferecer um retrato delirante sobre uma sociedade onde abundam as teorias da conspiração, as fake news quase não se distinguem das verdadeiras, a indignação deixou a rua para se refugiar nas redes sociais e o Photoshop vai servindo um pouco para tudo, desde apagar alguém da fotografia a tirar alguma celulite ou ruga indesejadas. A nossa, claro está.