Os Quatro Cantos do Império- Entrevista a André Canhoto Costa

“É preciso esperar pelo adormecimento da tripulação, fecharem-se os olhos cansados das boas vistas, os nervos ainda pulsam com as sensações amorosas, a pele fresca das águas, o macio dos seios e a limpeza das partes. Não se sabe quanto tempo passou, o sono parece assombra-lo pela novidade deste mundo.” 
In “Os Quatro Cantos do Império” de André Canhoto Costa
 
 
 
 
Para os amantes da História de Portugal, ler Os Quatro Cantos do Império de André Canhoto Costa é uma das melhores formas de mergulhar no passado triunfalista português. Não há senão. Da primeira à última página, acompanha-se a viagem de um anónimo algarvio, que descobre os mundos que Vasco da Gama descobriu. A trama enreda-se na ternurenta relação de um cão com um homem e na deliciosa metamorfose de um pastor. De rapaz simples e humilde, habituado apenas às lides da terra e às vicissitudes de um amor platónico, Lopo, (o protagonista), transforma-se no herói que a dada altura todos desejamos ser. 
“Esta é a história de um cão e do pastor que visitou os quatro cantos do império português para o encontrar.” Nós dizemos mais: Esta é a história de uma história improvável, um rol de proezas de quem nunca quis ser herói, mas acabou por sê-lo. E é também a história de uma época que luz no passado português e que cada um de nós, evoca com saudosismo ainda que não a tenhamos vivido directamente. 
Imagine-se a vitoriosa armada de Gama, imaginem-se as rotas comerciais, a aspereza do mar revolto, as tempestades do Bojador, a crueza da realidade que em momento algum da história favoreceu os mais pobres. Imaginem-se árabes e cristãos reclamando para o seu Deus a supremacia absolutas, (não mudámos afinal, nada). Mas imagine-se também isto que o autor imaginou: O Amor é afinal a única coisa capaz de nos manter vivos e é também o motor que nos coloca em movimento. Não fosse por amor, jamais se daria um passo. Fosse ele em direcção à paz ou à guerra. Poderíamos dar-lhe outro nome. Poderíamos chamar-lhe aventura em vez de amor. Ia dar ao mesmo.
 
 
Entrevista a André Canhoto Costa
 
Bee Dynamic Books- André Canhoto Costa, autor do romance histórico “ Os Quatro Cantos do Império”, escolheu o tema dos Descobrimentos para ser a base desta história. Esse facto deve-se a quê? Um fascínio muito particular pelas aventuras de Vasco da Gama ou gosta de história em geral? 
 
André Canhoto Costa- Os descobrimentos não são apenas um dado alegadamente glorioso no passado de Portugal, são um dos fenómenos mais empolgantes, contraditórios, sinistros e decisivos na história da humanidade. Desde a epopeia científica, a navegação astronómica, a derrota das superstições medievais – a coragem marítima, a condução da nau do Estado, é um tópico da linguagem política desde os gregos – até à construção de um mundo planetário, passando pelos primeiros passos na história sanguinária do comércio mundial livre (risos). Difícil é não encontrar coisas fascinantes no final do século XV, desde o comércio da cartografia, ao contacto com animais exóticos, rinocerontes, elefantes, papagaios, e mundos tão estranhos para os homens do tempo como se agora nos visitasse uma nave com habitantes de Galáxias longínquas. Quanto ao fascínio pelas principais figuras, é apenas uma consequência do estado primitivo do conhecimento histórico. Uma abordagem crítica não confundiria as consagrações políticas da época com a relevância de cada indivíduo, e por isso, a história será sempre política disfarçada com erudição (ou mais recentemente, salpicada por estatística de liceu). Quando se diz que Vasco da Gama é mais relevante que um qualquer grumete de quinze anos a bordo da armada, estamos a manifestar um certo fascínio pelas hierarquias, o que é legítimo entenda-se, desde que seja claro (tal como os filósofos do século XVIII, prefiro jogos com regras definidas). Se por outro lado, a história é simples opinião, uma disciplina literária com um método documental, então a figura de Vasco da Gama ainda me merece menos interesse. A terminar, gosto da história em geral, e é hoje uma forma extremamente divertida de resistir a um certo fascínio literário – muito parolo - pela atualidade, como se a única coisa interessante fosse a nossa «experiência» contemporânea do mundo. 
 
BDB- Entretenimento e cultura. Quando escreve um livro tem esse objectivo de ligar estes dois ingredientes ou vê-se perfeitamente a escrever uma história na base da mais pura ficção? 
 
ACC-A cultura é uma palavra tão abrangente que nos perdemos numa floresta de significados. Quanto ao entretenimento, confesso a minha relação difícil com o silêncio e a desocupação, e por isso, qualquer forma de evitar sofrimentos às mãos dessa figura estranha – o tempo – é sempre bem-vinda, e talvez não exista maior glória civilizacional do que a indústria do entretenimento. Normalmente, os escritores considerados literários pela crítica oficial escolhem formas mais pomposas para designar o que fazem, e até lembram que Xerazade evitou a morte contando histórias. Em todo ocaso, escrever é entreter o tempo, tal como ler, mesmo se em vez de contar histórias, fazemos falar «uma voz», «assistimos à mão que escreve» ou «trabalhamos a linguagem», no fundo, os escritores procuram obter um lugar no paraíso, caso contrário, iriam gerir bancos, uma atividade que necessita urgentemente de pessoas qualificadas. Também se tem dito que é hoje difícil escrever ficção pura, e já um irlandês problemático falava no «declínio da mentira». Há um autor português muito considerado intelectualmente de quem se afirma ter derrubado as fronteiras entre verdade e ficção, e que «as suas personagens não têm hipótese, pois sabem ser personagens». Isto é um bocado ridículo. Pois uma personagem que sabe ser personagem também pode ser uma maneira de esconder a incapacidade para inventar personagens, uma arte extremamente difícil e que não vem nos livros de Barthes, Žižek ou Lipovetsky. Na verdade, sempre existiram e continuam a existir pessoas com essa rara capacidade para fazer da página impressa uma expressão de realidade (desde Dickens, Victor Hugo ou Tolstoi até à autora de A Rapariga do Comboio) independentemente da complexidade da linguagem utilizada. Aliás, a disciplina e contenção verbal necessárias para fingir «realidade» é quase tão difícil como ser um Joyce, ao contrário do que dizem muitos críticos. Mas convenhamos que é uma arte cada vez mais difícil em face do poder do cinema e da televisão, por isso, naturalmente, os escritores tendem a refugiar-se no absurdo, nos malabarismos da linguagem ou no fluxo da consciência, o que nem sequer é uma novidade, basta lembrar o academismo literário dos séculos XVII e XVIII. Claro que me vejo a escrever ficção pura, a História serve como metáfora, mas as possibilidades da imaginação são infinitas. Mas chego a irritar-me quando vejo depreciar formas mais convencionais de narrativa, no fundo, uma pedantice, pois muitos talvez ignorem que o recurso à complexidade da linguagem, aos jogos intelectuais, à filosofia de bolso, pode ser apenas uma forma de esconder a falta de talento. 
 
BDB- O Latido, é digamos que um personagem principal que quase nunca aparece. É uma espécie de personagem principal fantasma, todavia não é possível que o leitor não acabe por se apaixonar por ele. Faz parte do seu imaginário uma companhia peluda de quatro patas, ou o André teve essa experiência na sua infância e posteriormente na sua vida adulta? 
 
ACC-Nunca tive um cão, vivi com um gato durante a infância e adolescência, e mais tarde, tive novamente um outro gato, até ter saído de casa dos meus pais. Mas existe hoje uma tendência para acreditar na intransmissibilidade da experiência pessoal de cada um, e a possibilidade de identificação com qualquer sentimento humano, está hoje muito desvalorizada. Aliás, a crise das Humanidades está muito relacionada com a ideia de que os sentimentos são inacessíveis, há um certo regresso do tribalismo, as pessoas tendem a associar-se por gostos, inclinações, opiniões, como se isso não tivesse discussão. Os algoritmos são a este nível de uma grande indigência científica e filosófica, pois são meramente orientados por critérios de valor numérico e comercial, uma espécie de tirania do gosto por expressão externa, sem qualquer esforço de compreensão sobre o que nos faz gostar das coisas, sem qualquer interesse em partilhar as razões desse gosto, sem qualquer interesse pela compreensão da diferença, o gosto adquire demasiadas vezes uma expressão superficial, ostensiva e até agressiva. Gosto muito de um escritor, Primo Levi, um homem muito marcado por esta crise – que era para ele já muito visível – sobre a incomunicabilidade da linguagem e da experiência de cada um. Negou-se sempre a aceitar a ideia de que temos de passar pelo sofrimento para o compreender, e insurgiu-se contra quem negava à descrição da vivência mental - e sobretudo a descrição com arte (evitemos agora este alçapão) – a possibilidade de tornar universal um fenómeno aparentemente pessoal e intransmissível. Quem tem a coragem de colocar hoje dúvidas sobre as vantagens de uma descrição escrita de uma viagem ou de uma guerra, a um conjunto de fotografias ou vídeos? Contudo, a leitura de Se Isto é Um Homem é muito mais poderosa do que qualquer imagem ou filme conhecido sobre o holocausto. E isso não se prende apenas com o conteúdo do filmado. É um problema de retórica. A questão não é a da imagem ou da palavra, mas de como se consegue atingir um grau de verdade, beleza, universalidade na transmissão da experiência. Não por acaso, a ciência atingiu o seu direito de cidade com o século XVIII precisamente no mesmo momento em que se declarava a universalidade dos direitos do homem e do cidadão. Se há critério decisivo na evolução científica é a ideia de que podemos partilhar os resultados das experiências e chegar a conclusões semelhantes. Não vejo razões para limitar essa partilha quando falamos de linguagem verbal, mesmo quando falamos de coisas tão problemáticas como as emoções. O Latido é um cão muito inteligente, mas não tem a capacidade verbal (como nós ainda não encontrámos formas de comunicar eficazmente as emoções) mas o facto de não dominar o português, não impede o Latido de viver e relacionar-se com os humanos. Se o fazemos com os cães, será assim tão difícil fazê-lo com os outros humanos? 
 
BDB- Apesar do romance ter uma forte componente histórica, não é ela o ingrediente principal do seu livro. Ela é apenas o pano de fundo. Foi propositado? Porquê? Por uma questão de maior liberdade na escrita? 
 
ACC-Claramente. Se há algo evidente para um historiador a dado momento da sua formação, são os limites impostos pelos dados extraídos dos documentos, e embora se possam ir buscar informações muito diversas ao mesmo documento – uma Crónica pode permitir saber o tamanho de um exército, os costumes políticos, o nome de um pastor, a data de um nascimento de um príncipe, ou a alimentação dos animais – há limites difíceis de ultrapassar, que por vezes nem são os da mera informação, mas uma certa forma de construir realidade. Claro que este livro, Os Quatro Cantos do Império, é uma provocação, e o destaque dado ao pastor, é uma forma de combater a forte tendência das nossas sociedades para a hierarquia. Quando se referem ao passado, os historiadores marxistas falam em estruturas, os economistas utilizam estatísticas, mas esta utilização da massa dos indivíduos serve apenas ideias políticas algo confusas, em geral, bastante conservadoras. De certa maneira, com a vida deste pastor, Lopo, quero colocar um problema contemporâneo: quem é mais importante para o futuro do país? O primeiro-ministro ou a senhora das limpezas do Centro Comercial? Alguns julgarão que estou a ser irónico, e até reacionário, por querer atribuir tal responsabilidade à senhora das limpezas. Mas não estou, pois acredito que não existe qualquer diferença e que nos falta dar um passo essencial em direção ao progresso, e considerar que um e outro têm exatamente a mesma importância política e económica. Mais importante ainda: ambos possuem a mesma capacidade para decidir sobre as coisas que têm realmente importância política. A especialização é normalmente uma forma (errada) de controlar a incerteza. Para quem me acusar de mensagem ou propaganda em arte, devo dizer que ofereço um prémio a quem me referir um livro sem mensagem ou propaganda. Há sempre propaganda, pode é ser mais ou menos interessante. Aliás, não há nada de mais propagandístico – conservador, pedante, e até ridículo – do que a ideia de arte pela arte. 
 
BDB- Lopo é acima de tudo um rapaz corajoso. Poderíamos quase chamar-lhe um profissional do impossível. Fazem falta nos dias hoje mais profissionais do impossível? 
 
ACC-É muito difícil ser profissional do impossível, uma vez que se torna muito difícil encontrar alguém disposto a pagar salários se não tiver nada a ganhar com isso, e o impossível, por natureza, é muito difícil de domesticar. Diria que Lopo é algo ingénuo – o que me parece fazer bastante falta hoje em dia – e isso, paradoxalmente, torna-se uma vantagem, pois não antecipando as vantagens, Lopo também não dá demasiada importância às desvantagens. Todas as coisas boas têm o seu preço, diz o senso comum, e se há coisa negativa associada ao conforto civilizacional e ao triunfo dos meios de comunicação, é uma cada vez mais desesperante dificuldade em ter tempo e vontade para ponderar com cuidado as coisas que dizemos ou fazemos. Nesse sentido, não vejo razões para este desejo desenfreado em construir a inteligência artificial. Já somos, em boa medida, inteligência artificial. Não quero com isto criticar esse caminho, não tenho tendência para o mito da degeneração. Mas também não compro a ideia de que a natureza – e as coisas, tal como acontecem - são sempre o melhor resultado possível (Voltaire gozou com esta ideia num livro célebre). A natureza não é boa, nem má, e não verterá uma lágrima pela nossa extinção, e se há coisa que podemos aprender com os filósofos do século XVIII é que a ideia de progresso é uma construção humana (e por isso é tão valiosa) e depende da nossa inteligência e aprofundamento moral. Não nos será oferecido numa bandeja. 
 
BDB- Sobre o panorama literário português. O que temos é bom? Bons autores e boas editoras? E leitores? Temos bons leitores? 
 
ACC-Esta é uma pergunta difícil. Não tenho obviamente um conhecimento do meio literário nacional ou internacional para fazer uma comparação rigorosa. Mas não vou fugir à pergunta e acho que o fascínio dos ecrãs e da tecnologia trouxe algum sentimento de urgência às editoras que pode não ser positivo. Por outro lado, o facto de se ganhar bom dinheiro com livros também traz ao mundo da literatura o que é típico da humanidade: equívocos, injustiças, aldrabices. Tenho a ideia de que existem muito mais pessoas a escrever com qualidade, e que os autores publicados não serão em todos os casos as pessoas com mais talento. Mas a literatura é um fenómeno de valorização qualitativa por excelência. Seria como tentar dizer se em Portugal temos melhores relações amorosas do que em França ou na Nova Zelândia. Se o critério do valor literário for o do gosto pessoal livre, só há uma maneira de medir: é o mercado, o número de vendas, e nesse sentido, não nos comparamos à literatura norte-americana ou inglesa. Se o critério for o da complexidade e da relação com a tradição literária ocidental, qualidade das metáforas, cultura, exigência intelectual, diria – ao contrário do que vejo por vezes escrito – que temos muito, mas muito melhor literatura em Portugal no século XX, numa comparação com os norte-americanos e ingleses (Nabokov não sei se poderá considerar-se norte-americano, julgo que não, apesar das suas declarações). Basta pensar na quantidade de neorrealistas portugueses com talento, e não estou a ver nenhum país que tenha no final do século XX dois escritores como Lobo Antunes e Saramago, a juntar a Fernando Pessoa. Só perdemos talvez para a Itália. Em todo caso, se queremos preservar a imaginação e o mérito intelectual segundo estes últimos critérios (e se calhar não queremos) penso que é urgente rever duas coisas: a forma como as editoras de alegado prestígio literário escolhem os autores e a forma como os prémios literários inclinam de forma totalmente aleatória o terreno de jogo, em função de valores ainda mais sinistros do que os do mercado. A mim não me preocupa o sucesso de Pedro Chagas Freitas, que me parece transparente e confirmado pela utilidade (por muito que a utilidade faça comichão a uma mente literária). Preocupa-me muito mais a entronizações (obscura) de alguns autores apresentados como o último grito da inteligência humana e que na verdade, apenas tiveram o mérito de agradar a uma dezena de jornalistas literários e professores universitários, que pouco se distinguem de Pedro Chagas Freitas. 
 
BDB- Sente-se valorizado enquanto autor? 
 
ACC-Não, o que é, na minha opinião, a melhor coisa que pode acontecer a um escritor 
 
BDB- Sobre o Nobel da Literatura. Bob Dylan foi o justo galardoado? Em Portugal, que autor mereceria hoje, essa distinção? 
 
ACC- Não dou qualquer importância a prémios. Tenho inveja do dinheiro, isso é óbvio. Lá está, um prémio literário é cada vez mais uma coisa ridícula, pois quem conhece a obra de todos os escritores, mesmo só os portugueses? Toda a gente diz maravilhas de Agustina Bessa-Luís mas conheço mal, o que é uma injustiça da minha parte, mas como conhecer tudo? Li quase todo o Fernando Namora, Manuel da Fonseca, Virgílio Ferreira, Lobo Antunes (nessa altura publicado) e Saramago, antes dos trinta anos, para dar alguns exemplos, o que me afastou de Ferreira de Castro, Agustina ou Mário de Carvalho. Depois comecei a ler os russos e os italianos e nunca mais consegui ler um autor português recente sem uma sensação de estar no funeral de um parente afastado. Falta leveza e humor, há um peso excessivo do melodrama, uma sensação de importância, que resulta numa certa comédia, para quem lê, claro. Excluamos daqui génios problemáticos como Luiz Pacheco, Mário Henrique Leiria ou Diniz Machado. Mas isto pode ser muito injusto, é esta a tragédia dos prémios literários. Quanto a Bob Dylan, não tenho muita paciência, lá está, é uma questão de familiaridade cultural, mas não me incomodou nada a atribuição do prémio, como diz o Francisco José Viegas, tudo o que irritar o meio literário (e os autores complexos e sofredores) deixa-me bem-disposto. É a inveja portuguesa, segundo dizem, no fundo, devo ser invejoso. Também gosto muito de sardinhas e vinho tinto. 
 
BDB- Os seus leitores vão continuar a contar com mais romances históricos escritos por si? 
 
ACC-Se a editora quiser continuar a perder dinheiro, julgo que sim. 
Publicado em 26 Outubro 2016

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