Paul French sobre a Coreia do Norte na Magg

É um dos países mais misteriosos e inacessíveis do mundo e, talvez por isso, seja capaz de gerar tanto interesse internacional. Falamos da Coreia do Norte, um país que colapsou economicamente há 30 anos e que sobreviveu. Onde o acesso à informação é restrito e altamente controlado pelo governo, onde os cidadãos são obrigados a pensar e a exprimir apenas aquilo que a ditadura em que vivem exige.

Mas é também um estado onde a punição coletiva e a paranoia imperam. Quem o diz é Paul French, o escritor britânico e especialista na história do país, que assinou o livro “Coreia do Norte: Estado de Paranoia” editado pela Desassosego e já à venda por 19,90€.

Ao longo de 384 páginas, é-nos dada a conhecer a forma como se vive num país em tensão constante com o mundo e do quão inesperado pode ser o desfecho dessa disputa.

Segundo o autor, com quem a MAGG conversou, basta um pequeno erro para que os problemas atinjam uma escala mundial. Principalmente agora que Kim Jong-Un recomeçou os testes nucleares.

“Quando um dos mísseis foi em direção ao Japão, foi assustador, assim como um outro que ia em direção à China e depois mudou de rota. Se não tivesse mudado de direção, os Estados Unidos da América teriam respondido”, alerta.

Durante a conversa, houve ainda tempo para falar sobre como é a reinserção social daqueles que decidem fugir da região e daqueles que esperam junto à fronteira da Coreia do Norte com a China para influenciar refugiados a regressar ao país com sacos repletos de bíblias.

Sendo um historiador da Coreia do Norte, é-lhe difícil não regressar ao país?
Sem dúvida. Estive lá em 2001 e, desde então, já voltei dezenas e dezenas de vezes.

O que é que mais o surpreendeu?
Bem, grande parte do meu background é referente àquilo que conheço e fui vivendo na China. Apesar de ter nascido em Londres, acabei por estudar em várias universidades chinesas até acabar a viver em Xangai e em Pequim.

Mas até isso acontecer, era um tipo jovem que já tinha tido a oportunidade de visitar a União Soviética, toda a Europa de Leste e, claro, países como a China, Mongólia e até Cuba.
 

Faltava-lhe visitar talvez o último país comunista, portanto.
Sim, foi muito isso. Até porque essa era uma experiência que fazia parte daquilo que são os meus interesses académicos. E visitar a Coreia do Norte foi uma experiência muito diferente daquilo a que estava habituado.

Atenção, estive na China nos anos 80, quando já havia sinais claros de mudança. Regressei na década de 90, quando já se tinha tornado cada vez mais ocidentalizado e onde havia cada vez mais pessoas a ganhar dinheiro. Mas na Coreia do Norte não encontrei nada disso. Não havia publicidade nem outdoors gigantes. Lojas abertas nem vê-las, e restaurantes ou bares abertos não existiam. Não havia nada e era quase como se aquele país se tivesse perdido no tempo.

Foi uma experiência incrível, mais ainda depois de ver todo o culto de personalidade que, naquela altura, se assistia em redor de Kim Il-Sung e que depois passou para Kim Jong-Il. Era evidente que se tratava de um país que estava desligado do mundo e da realidade exterior, e as interações que tive com os cidadãos de lá comprovaram isso mesmo. Eles não sabiam nada e, das poucas vezes que falavam com os turistas — o que é proibido — discutiam futebol.

Foi o primeiro sítio do mundo onde estive e onde nunca ninguém tinha ouvido os Beatles ou o Michael Jackson.

Ainda se assiste a uma restrição muito grande de acesso a conteúdos vindos de fora?
Ainda há essa censura e essa restrição, mas não tanto como quando visitei o país pela primeira vez. A explicação é simples: há vários produtos fabricados e produzidos na Coreia do Sul a entrar na Coreia do Norte e, de certa forma, assistiu-se a um certo relaxamento nesse aspeto.

Mas, regra geral, continua um país muito controlado e restrito onde a guerra económica nunca chegou ao fim. É essa sensação que tenho quando lá vou: de que na Coreia do Norte se vive como se a Segunda Guerra Mundial, ou a Guerra da Coreia, nunca tivesse chegado ao fim.
 

É uma paranoia que é reforçada pelo medo constante de uma guerra?
Sem dúvida. Aliás, quando lá fui vi muitas imagens espalhadas pela região com palavras de ordem que alertavam para a iminência de um possível conflito armado iniciado pelas forças inimigas. Vivem num estado de paranoia perpétuo, como se estivessem rodeados de inimigos por todos os lados.

Mas é seguro dizer que também nós vivemos um bocadinho paranoicos em relação a eles?
Eles acham que nós os vamos atacar a qualquer momento, enquanto nós temos receio que eles façam qualquer coisa estúpida com o intuito de provar que são capazes de tomar o mundo de assalto. Apesar de nenhuma das situações ser real, também não são totalmente impossíveis. Mas sinto que sempre que falamos da Coreia Norte, falamos essencialmente de mitos que se foram criando e que, enquanto investigador, sinto a obrigação de desconstruir.

Tais como?
A ideia de criar este livro coincidiu com a altura em que a Guerra do Iraque estava a decorrer [entre 2003 e 2011]. Naquela altura, quase que nos parecia fácil e até indiferente uma invasão ao Iraque porque nenhum de nós alguma vez tinha visto um iraquiano, nem sabíamos como era a vida em Bagdade. Tínhamos esse distanciamento. No que toca à Coreia do Norte, é multiplicar esse sentimento por 100.
 

Diria que estamos distanciados face às atrocidades que se praticam na Coreia do Norte? Quanto muito, há uma banalização pela repetição da mesma informação.
Alguma vez conheceu ou bebeu uma cerveja com um norte-coreano?

Não, mas isso não pode ser suficiente para justificar uma suposta indiferença.
Certo, o meu ponto é apenas este: das poucas imagens a que temos acesso, a população da Coreia do Norte parece-nos composta por robôs que seguem um tipo estranho que os lidera, precisamente porque o regime assim o exige.

Falar da Coreia do Norte é mencionar tanques e mísseis, mas a verdade é que, quando chegamos lá, e ainda que tenhamos um contacto limitado com a população, vemos que são pessoas totalmente normais. Gostam de beber uma cerveja, de descontrair com a família e de ter acesso a boa comida quando têm essa possibilidade.

Temos de ser capazes de humanizar a Coreia do Norte, e de levar as pessoas a aceitar que o problema está no governo que as rege. Apesar de os cidadãos não serem intelectualmente desenvolvidos, porque lhes são retiradas todas as ferramentas e porque é abolido o pensamento crítico, também não é verdade que nos queiram perseguir, matar as nossas famílias, violar as nossas filhas ou tomar o mundo de assalto.

Não é nisso que eles pensam sempre que acordam de manhã. Simplesmente se levantam e… [pausa longa].

Tentam sobreviver?
Exato. É uma vida baseada na sobrevivência, na paranoia e na desconfiança constante.

Mas a verdade é que há muita desinformação e até algum humor na abordagem ao tema. Isso ajudou a moldar a perceção global que nós, mundo ocidental, temos da Coreia do Norte?
É interessante porque comecei a falar da Coreia do Norte após o primeiro susto a sério com um lançamento de um míssil, na altura durante a presidência de Bill Clinton. Depois veio George W. Bush com o seu Eixo do Mal [um termo adotado para se referir a governos hostis e promotores de terrorismo — onde a Coreia do Norte estava inserida].

Foi uma das coisas mais estúpidas daquela presidência, porque colocar o Irão, o Iraque e a Coreia do Norte no mesmo saco não é uma forma muito sensível e honesta de se olhar para o mundo. Mas enquanto Kim Jon-Il foi vivo, fomos ouvindo histórias de que era gordo, de que bebia e de que tinha várias amantes. Era fácil fazer pouco dele, como tem sido fácil gozar com Kim Jong-Un. Ora vejamos: é novo, gordo e pouco ou nada cool. Até o corte de cabelo mostra como vive à margem do resto do mundo.

Ainda assim, toda essa campanha de troça resultou a seu favor. É que embora no Ocidente nunca ninguém o tenha levado muito a sério, durante esse processo ele aproveitou para consolidar o seu poder.

E quase sempre através da violência e das execuções.
Exatamente. Estamos a falar de alguém que matou o próprio tio [em 2013] e outras 75 pessoas. Ele assumiu o controlo ao ponto de um dia acordarmos e pensarmos: “Merda, isto é mesmo real. Ele tem mesmo armas nucleares e não é assim tão estúpido.”

Foi a partir daí que o começámos a levar a sério. Sinto que até mesmo aqueles que estudavam e investigavam a Coreia do Norte só se aperceberam do risco que ele representava a partir daquele momento. Precisamente porque nunca ninguém esperou que se tornasse no líder do país.

Todos nós achámos que ele era demasiado novo. Da mesma forma, nunca ninguém seria capaz de prever que ele fosse capaz de matar o tio ou o meio-irmão. Claro que isto o fez parecer extremamente poderoso.

Foi um bocadinho como nunca prever Donald Trump como presidente dos Estados Unidos?
Precisamente. Nunca passou pela cabeça de ninguém que alguma vez teríamos um presidente norte-americano e um ditador norte-coreano juntos na mesma sala. E lembro-me de toda a campanha que foi feita para o descredibilizar e que, na verdade, jogou a seu favor.

No seu livro, compara a Coreia do Norte a um estado Orwelliano. O Big Brother está sempre à espreita?
Sim, estamos a falar de uma sociedade altamente politizada. Há reuniões políticas antes de os cidadãos pegarem ao serviço, e onde se fala de como podem servir melhor o país. No final do dia há outra reunião, que geralmente serve para acusar colegas de trabalho de não tentarem ajudar o suficiente. É um sistema muito violento onde o objetivo principal é criar um clima de tensão e de paranoia.

Isto leva a que, apesar de as pessoas trabalharem juntas, serem incapazes de criar uma relação de confiança total. Os colegas nunca se confiam inteiramente, assim como os pais sentem que não podem confiar totalmente nos filhos. É este estado constante que nos impede de ver quaisquer sinais de dissidência e de resistência por parte da população.

Mas são sequer capazes de questionar o seu propósito numa sociedade deste tipo?
Acho que agora grande parte dos norte-coreanos tem noção do quão atrasados se encontram em relação aos outros países do mundo, especificamente quando se comparam à China, ao Japão e à Coreia do Sul. E essa comparação é possível porque muitos deles compram computadores em segunda mão e uma pen USB que é contrabandeada e que permite ter acesso a muitas produções televisivas feitas na Coreia do Sul.

Veem filmes, programas de televisão, séries…

Tudo ilegalmente.
Sim, mas eles fazem-no recorrentemente. Antigamente, se um cidadão tivesse um leitor de DVD em casa e a polícia chegasse, era automaticamente preso. Agora é permitido terem um computador em casa que, apesar de ter acesso limitado à internet, permite ligar essa pen. Caso a polícia faça uma rusga, basta engoli-la ou atirá-la pela janela.

As pessoas sabem mais, sim, mas isso não é necessariamente positivo. Principalmente porque a Coreia do Norte tem um método de castigo coletivo, onde são as famílias, os amigos e os colegas de um cidadão a ser castigados caso ele saia do país, por exemplo.

O peso da culpa e do medo são muito fortes porque, uma vez que se sai da Coreia do Norte, é impossível comunicar com quem lá ficou. Na maior parte das vezes, aqueles que fogem são os mais jovens — precisamente porque ainda não tiveram tempo de entrar em relações ou estabelecer laços com ninguém. Nestes casos, ficam apenas as famílias que aprovam a fuga. Eles sabem que vão ter problemas assim que os filhos fugirem, mas aceitam. Querem o melhor para eles.

O que é que dizem as pessoas que fogem assim que veem como é o mundo fora da Coreia do Norte?
Eles estão mais cientes de como é o mundo. Mas, pelo menos em Inglaterra, têm aulas durante um ano para aprenderem a adaptar-se à nova realidade. E não é uma questão de aprenderem a falar inglês, porque isso fazem-no sem problema. É uma questão de irem às lojas e saberem que não precisam de aceitar aqueles planos ridículos que um tipo da Vodafone lhes quer vender só porque percebe que eles não sabem muito do assunto.

Eles não sabem ir ao supermercado, ou reagir a pessoas que lhes oferecem créditos nos centros comerciais. São facilmente explorados. Nas pessoas mais velhas as histórias são sempre mais trágicas, em que o peso de deixar a família para trás se traduz no abuso de álcool e drogas. Nem sempre temos histórias felizes quando falamos de refugiados da Coreia do Norte.

Assim que aprendem o que significa viver em comunidade, muitas vezes tentam assemelhar-se a um sul-coreano. Tentam mudar o sotaque, frequentam bares e restaurantes sul-coreanos e não querem que ninguém saiba quem realmente são.

Não há uma tentativa de revolução?
Seria o mais natural, mas não é o que acontece. Geralmente estas pessoas não querem discutir política ou o estado do país que deixaram para trás. Querem simplesmente esquecer aquilo por que passaram.

Há registos de pessoas que tenham tentado regressar à Coreia do Norte depois de fugir?
O único conhecimento que temos é que há pessoas junto à fronteira de Dondang com a Coreia do Norte que tentam converter ao cristianismo aqueles que estão a fugir. O pior é o que fazem depois, quando incentivam muitos a voltar para lá com sacos cheios de Bíblias para serem distribuídas — o que é totalmente proibido e perigoso. Mais uma vez, quando uma pessoa passa anos da sua vida a viver sob a influência de nenhuma religião e depois outra pessoa lhe mostra uma nova opção, não há uma capacidade intelectual que os impeça de serem sugados por aquela ideologia.

O turismo da Coreia do Norte é cuidadosamente planeado e monitorizado. Acha que aqui, mais do que em qualquer outro lado, deve haver uma responsabilidade ainda maior dos turistas?
Principalmente dos jornalistas ou daqueles que vão com o intuito de escrever sobre a experiência. Conheço o caso de um jornalista que foi à Coreia do Norte e que relatou a conversa com o guia turístico, que lhe terá dito que achava que Kim Jong-Il deixava as pessoas morrerem à fome.

Soubemos de imediato que aquilo era mentira. Não digo que eles não pensem dessa forma, o que estou a dizer é que eles nunca diriam isso a um turista. O facto de o jornalista ter escrito isso, sendo verdade ou não, é de uma irresponsabilidade enorme. É muito fácil para o governo norte-coreano perceber quando é que o jornalista esteve no país e quem foi um dos guias com quem alegadamente falou. E, garantidamente, essa pessoa vai desaparecer.

Isto levou a que fossem criadas viagens apenas para jornalistas com guias que sabem, precisamente, ao que devem ou não responder.
 

Já não faz sentido perguntar se os norte-coreanos sabem que estão a ser controlados. Mas ainda há quem duvide?
Talvez só os mais desatentos ao que realmente se passa lá. Mas sim, acho que essa pergunta já não se impõe, precisamente quando sabemos que os cidadãos se controlam uns aos outros.

Lembro-me que uma vez estava dentro de um táxi e, a meio da viagem, o motorista parou e entrou outra pessoa que eu nunca tinha visto na vida. Entrou, sentou-se ao lado do condutor e naquela momento fez-me sentido que fosse para o espiar enquanto me conduzia. Mas a certa altura perguntei-me: “Como é que posso saber qual dos dois é hierarquicamente superior?”. Podia muito bem ser o motorista a espiar o que entrou depois. Nunca vou saber e é esse estado de dúvida e paranoia perpétua que se sente ali.

Diz no seu livro que a Coreia do Norte é dos poucos países onde o exército continua a ser um dos pilares fundamentais. Quais são as consequências desta militarização do povo?
A mais importante é que num país com 22 milhões de habitantes, cerca de um milhão está nas forças armadas. O que significa que todas as famílias do país estão ligadas ao exército e que tudo o que que acontece na região tem um aspeto militar associado. Há camiões por todo o lado, pessoas com uniformes e todos eles diferentes. Também isso faz parte da perpetuação da paranoia porque nunca conseguimos distinguir um simples agente da polícia de um militar com um cargo importante.

Mas o mais chocante é que esta militarização começa nas escolas, com miúdos de apenas 7 anos a aprenderem a atirar granadas, a serem treinados para se assumirem como meninos-soldados e a lidarem com a morte de próximo.

Como vê o futuro do país? Está à vista um novo colapso económico?
A Coreia do Norte colapsou há 30 anos e sobreviveu. Atualmente, o governo anunciou rações alimentares de apenas 300 gramas por dia — são números historicamente baixos e perigosos. Além disso, a região está a enfrentar um período de seca enorme onde a plantação de arroz é impossível porque não há água. Se as pessoas começarem a morrer à fome outra vez, é um problema. E é aí que as armas nucleares entram em jogo novamente.

Kim Jong-Un voltou a testar mísseis como uma forma de puxar as atenções para si e de os usar como moeda de troca. Ele precisa que alguma coisa aconteça o mais rapidamente possível.

Quão assustados deveríamos estar?
É difícil responder, mas vou só dizer que basta que aconteça um erro estúpido. E erros estúpidos são muito fáceis de acontecer. Quando um dos mísseis foi em direção ao Japão foi assustador, assim como um outro que ia em direção à China e depois mudou de rota. Se não tivesse mudado de direção, os Estados Unidos da América teriam respondido e teríamos uma frota norte-americana à porta da Coreia do Norte agora mesmo, assim como mais tropas junto à fronteira com a China.

Bastava um acidente estúpido para termos um problema muito grave. Muito recentemente, Kim Jong-Un voltou a lançar mísseis e encontramo-nos neste impasse mais uma vez. Basta um míssil atingir o solo, e não o mar, para estarmos fodidos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Publicado em 12 Junho 2019

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