Sonhos americanos: A Estrada do Tabaco de Erskine Caldwell

 

Sonhos americanos: A Estrada do Tabaco de Erskine Caldwell

A Estrada do Tabaco de Erskine Caldwell dramatiza a vida de uma família de proprietários rurais da Geórgia, debilitada por uma pobreza cruel.

Como comédia, A Estrada do Tabaco é um fracasso modesto; como tragédia é um fracasso abjeto. Ainda assim, 80 anos depois da publicação deste romance de Erskine Caldwell, a obra mantém o seu espírito de alegria contagiante e obscena. É tão indelével da memória de quem o leu como um freak show. Em 1932 ninguém soube o que dizer do talento de Caldwell, e nem hoje ele conseguiu granjear mais atenção, porém o seu legado permanece. Caldwell foi o pai daquilo a que podemos chamar a escola degenerada da ficção dos Estados Unidos da América. Os seus descendentes incluem escritores como William S. Burroughs, Harry Crews, Katherine Dunn, e Barry Gifford. A Estrada do Tabaco é grosseira, perturbadora e genuinamente americana.

Um livro desconfortável

O romance recebeu inúmeras críticas severas aquando a publicação, mas depois de ter sido adaptado para o espetáculo que mais tempo ficou no palco dos musicais, (um feito para a história da Broadway em 1935), vendeu 10 milhões de exemplares. Não é totalmente surpreendente que os críticos se tenham sentido incomodados com a história da família Lester  – que rima na língua inglesa com fester (úlcera), molester (pedófilo) e incester (aquele que pratica incesto) – uma família de selvagens cruéis e analfabetos [do estado]da Geórgia centro-ocidental.

Nos primeiros anos após a Grande Depressão, as preocupações intelectuais dos anos 20 foram subtilmente abandonadas. Os artistas e críticos deixaram de se queixar que a América era um país puritano, mecanizado e estandardizado, governado por púdicos, homens de negócios e executivos estúpidos.

Tal como Frederick Lewis Allen escreve em Only Yesterday, a sua história da América dos anos 30, o assunto na ordem do dia era a reforma económica. Sustentava-se que “as massas de cidadãos que realmente interessavam eram aqueles que se encaixavam no perfil de escritor e artista, para as quais a reforma deveria ser feita”. Os escritores tinham necessidade de retratar as condições de vida dos mais desfavorecidos na hierarquia social — era essa a única forma de operar uma mudança social. Foi uma era de inocência na América, na qual os escritores ainda acreditavam que os romances de ficção poderiam mudar alguma coisa a nível social.

 

Personagens proscritas

A família Lester, à primeira vista, parece ter os heróis ideais de um romance decorrido na era da Grande Depressão. São pobres, aliás desgraçadamente pobres, uma vez que a sua terra se tornou árida devido ao cultivo de algodão, não podendo ser cultivada durante sete anos. 75 anos antes, o avô Lester era proprietário de uma enorme plantação de tabaco, mas a propriedade teve que ser vendida aos credores. Os Lester apenas vivem na pequena parcela atual graças à compaixão do novo proprietário. A casa onde vivem nunca foi pintada, abana, está apodrecida e cheia de buracos, e partes do teto caem de cada vez que chove.

Jeeter Lester, o patriarca, tem 12 filhos (sobreviventes), dos quais não recorda a maior parte dos nomes. Todos menos dois saíram para nunca mais voltarem a casa. Dado que Lester não tem posses para alugar uma mula ou instrumentos básicos para cultivar a terra, a sua principal renda monetária vem da venda das suas filhas para casar. Ele vende Pearl, a sua filha de doze anos, a um vizinho por 7 dólares, algumas colchas e quase um galão de óleo para cilindros.

Jeeter vive com a sua mulher Ada, que sofre de pelagra e passa os dias a sonhar com um vestido bonito com que será enterrada. Vive também com a sua mãe, com a qual ninguém fala, a não ser “sai da frente” ou “para de comer o pão e a carne”; com o filho Dude, grande e estúpido, de 16 anos e com a filha Ellie May, de 18 anos. Ellie May ainda não é casada devido a um lábio leporino que exibe as suas gengivas como uma ferida dolorosa em constante sangramento. Todos eles se encontram lentamente a morrer à fome.

Nenhuma destas personagens seria apanhada morta num romance de John Steinbeck, Carson McCullers ou Eudora Welty. Os Lester são pobres, mas não têm dignidade. Comportam-se como animais selvagens: roubam uns dos outros, espancam-se, têm sexo uns com os outros. São violentos, incuravelmente estúpidos, e procrastinadores a um nível quase patológico. Jeeter é tão preguiçoso que quando tropeça, fica no chão durante uma hora antes de se dar ao trabalho de se levantar.

 

Palavra de autor

A crueza gratuita dos Lester frustrou os críticos de Caldwell… Seria o romance um grito pela justiça social, ou uma sátira sem piedade? Sim, houve péssimas condições de vida no Sul rural – mas seria realmente assim tão más?

Caldwell, que jogava à defensiva nas entrevistas, alegava que tinha almejado jogar com os dois campos – a tragédia e a comédia – neste livro:

«São quase permutáveis, pois há comédia na tragédia e tragédia na comédia. Há na verdade muito pouco a distinguir entre ambos, não se terá um sem o outro… Teremos que ser genuínos com aquilo que criamos, e na sua essência a vida é um pouco de ambas. Combinam-se.»

Uma declaração indiscutível, mas pouco sincera. A ficção, apesar e depois de tudo, não é a vida, as mesmas regras não poderão ser aplicadas. Só uma vez é que Caldwell equilibra comédia e tragédia: na primeira cena do livro, quando o leitor ainda não se apercebeu completamente do clima absurdo do romance.

O vizinho Lov Bensey, que regressa da cidade com um saco cheio de nabos, para junto ao terreno dos Lester com uma queixa. Pearl, a sua noiva de doze anos, recusa-se a dormir com ele. Ele tentou bater-lhe, deitar-lhe água e atirar-lhe pedras e paus, mas nada funcionara. A única solução que lhe resta é atá-la à cama, mas ele precisa da ajuda do pai dela para levar isso a cabo. Enquanto ele se queixa a Jeeter, Lov distrai-se ao ver Ellie May, que rasteja até ele seminua sobre o chão de areia. Lov começa a “cavalgar” a rapariga deformada. Entretanto, e aproveitando-se da distração de Lov, Jeeter tira-lhe os nabos e leva-os para os bosques enquanto Ada bate no seu cunhado com um pau para evitar que persiga Jeeter.

Pelo menos neste caso, os Lesters são motivados pela fome extrema. Mas maiores feitos indignos se seguem. Dude casa com uma mulher sexualmente voraz com o dobro da sua idade de modo a poder conduzir o seu automóvel. Quando o casal vai para o quarto para consumar o seu casamento, o resto da família Lester fica a escutar atrás da porta ou arrastam um escadote para conseguirem espiar da janela o acontecimento. Jeeter tenta ter relações sexuais com a sua cunhada e, subentende-se, com as filhas. Dude atropela um homem afro-americano, acabando por matá-lo, mas só se arrepende do estrago causado no automóvel; depois atropela a avó.

Uma tristeza hilariante

A Estrada do Tabaco é triste, mas nunca trágico. As personagens de Caldwell carecem da dignidade das figuras trágicas – são demasiado cruéis e abomináveis. As consequências que sofrem, assim sendo, não surpreendem: não resta nenhuma dúvida que os Lester irão acabar na ruína absoluta, em grande parte porque começam e nascem na ruína e não demonstram nenhum desejo de escapar ao seu amargo destino. Essa é a mesma razão que leva a que este romance não seja considerado uma comédia. É divertido, mas como o humor negro: não devemos rir, não queremos rir, mas rimos até às lágrimas. E quando paramos de rir, perguntamo-nos se seremos assim tão diferentes dos animais selvagens.



Autor: Nathaniel Rich

Publicado em 11 Setembro 2014

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