Terrarium artigo no Máquina de Escrever
Não é todos os dias que assistimos à publicação de ficção científica (usemos as iniciais FC para poupar caracteres) made in Portugal. Mais raras sendo ainda as ocasiões em que vemos um título ao qual podemos aplicar o crachá de “clássico” (do género) a conhecer não só uma reedição, mas na verdade uma nova versão. Um pouco como Coppola, com o tempo, voltou a Apocalypse Now e nos deu a ver a sua leitura “redux” da coisa. Publicado originalmente em 1996 na coleção de FC que a Editorial Caminho então apresentava, Terrarium, de João Barreiros e Luís Filipe Silva, regressa agora nesta versão “redux”. Que não tem só nova capa e edição pela Saída de Emergência. Trata-se, na verdade, de uma versão revista e aumentada, dando oportunidade a esta narrativa para resolver algumas arestas que faltava polir e um ou dois pregos que eventualmente tinham ficado de fora.
“Devido à pressão quase neurótica para a entrega do manuscrito houve certas partes da narrativa que ficaram carentes de uma certa reformulação”, explica à Máquina de Escrever João Barreiros, autor de, entre outros, Duas fábulas tecnocráticas (1977), Disney no céu entre os Dumbos (2001) ou A verdadeira invasão dos marcianos (2004).
A hipótese de reedição foi, para Luís Filipe Silva, autor de O Futuro à Janela (1991), da série GalxMente (1993) ou de Aqueles Que Repousam na Eternidade (2006), “um raio de luz que surgiu após décadas no escuro, o que é mais literal do que metáfora”. O autor explica ainda que “a editora, por motivos óbvios e razoáveis, impôs que o livro não podia ficar maior do que já estava (com mais de 600 páginas)”, o que os “obrigou a retirar material”. Acabou “por sair o que não contribuía diretamente para o enredo tal como concebido no inicio (por exemplo, o Prólogo da edição de 1996 foi escrito depois de tudo o resto).”
O Prólogo, lembra João Barreiros, “foi escrito quase no final da narrativa e acabou por se transformar em algo demasiado lento para tudo aquilo que viria depois”. Por isso, explica: “Sempre ouvi dizer que se uma história começasse com uma explosão, deveria terminar com algo de absolutamente catastrófico, como s sabotagem do nosso Sol. Portanto fora com o Prólogo que tinha sido escrito exclusivamente pelo LFS, e viva com algo bem mais substancial, digamos uma nova novela dividida em duas partes, onde ambos participaríamos. Reparámos que em nenhum dos contos a perspetiva do Mr Lux era dominante. Agora passou a ter um lugar de excelência. Lembrámo-nos também que Portugal estava ausente da história, coisa feia, pois somos dois autores tugas. Por isso fora com Marrocos e viva Cascais. Nos finais alternativos, o primeiro era demasiado referencial aos antigos membros da extinta Simetria, pessoal que ninguém hoje em dia ouviu falar. Também nos pareceu que esta era a parte que pouca gente gostava. Fora com ele, e viva um planeta inteiro assombrado pela presença de uma humanidade que nunca existiu. E já agora dar a palavra ao Embaixador Vulpis. A meio do texto havia frases que podiam ser mais polidas e dois gigantescos bloopers que felizmente ninguém à altura notou: a Clara de Sousa vestir-se duas vezes seguidas na nave do Bonecreiro, e o Roy Baker pagar uma conta com um cartão de crédito que não podia trazer consigo. (isto pelo menos nas partes por mim escritas). Havia também a pequena BD sobre a Triste Judite que surgiu demasiado tarde para o lançamento do livro, há 20 anos. Toca de a incluir. As modificações feitas pelo LFS nas partes dele foram mais extensas”.
Luís Filipe Silva observa que “o facto de ser reescrito ou revisto surge de há mais tempo, pois a meio deste longo silêncio” começaram “a montar uma versão redux”. Ele mesmo começou “a ter algumas ideias para novas histórias, embora nesta versão só a da baía de Cascais convertida num inferno tropical tivesse sobrevivido). O formato em mosaicos convida a isso. O romance trata da história central entre grupos dominantes, mas outras histórias e enredos paralelos existirão. Afinal, sempre são 1500 espécies, das quais serão mencionadas talvez uma ou duas centenas.”
Falando da génese do livro, João recorda que 80 por cento de Terrarium “já estava escrito” antes de Luís “aparecer”. O livro, revela “era para ter sido escrito por outro infeliz” que não nomeia, e do qual conta nunca chegou “a ler uma só palavra”. Havia por isso “buracos a meio, era necessário acrescentar um prólogo, criar uma narrativa para colocar o Joel na Amazónia, achar três fins possíveis para a história”. E continua: “O LFS encarregou-se do Prólogo, da Madrugada dos Deuses e de algumas peças intercalares incluídas No Coração da Luz”. João escreveu “a alternativa final e o LFS as duas primeiras. Na versão redux, a primeira e a última Alternativa” passaram a ser suas. “Sem net ou email, para enviar e reenviar todo o trabalho dependeu da troca de disquetes e de inumeráveis telefonemas”.
Luís conta que, ao entrar em cena já com o projeto bem avançado, teve de “mergulhar num universo já tecido e concebido ricamente pelo João, e que tinha um mapa rudimentar”. Entre conversas, foi-se “apercebendo do todo e sugerindo ligações nos locais em que parecia fazer sentido. Caso tivesse contribuído em igual medida com o texto feito pelo João”, diz, teriam “um livro de 1000 páginas, o que seria impraticável para uma editora portuguesa”. Perante estas realidades, “o resto foi realizado por telefonemas e trocas de ficheiros em disquete e impressões para rever”. Luís recorda que este foi o primeiro livro que entregaram “exclusivamente em formato digital à editora” (não se recordando mesmo se houve sequer uma cópia física do texto). Passados 20 anos, “os novos textos foram fácil e eficientemente trocados por email…”
No fim, entre acrescentos e cortes, Luís confessa que na verdade “nada desaparece, pois a edição antiga ainda se encontra nos alfarrabistas”, pelo que o que fizeram foi “na prática, escrever mais.”
E aqui talvez convenha dar pistas a quem não conheça o Terrarium… É assim que é apresentado:
“Estamos a meio do novo milénio e a Fortaleza Europa acabou de vez.
Bruxelas não é mais do que uma cratera radioativa, as zonas costeiras
foram alagadas pela subida das águas e a temperatura ambiente aqueceu
até o clima ser quase tropical. Quem olhar para o alto, nos raros dias onde
ainda se podem ver as estrelas, vai descobrir um anel gigantesco composto
pelas carcaças das naves de exóticos migrantes.
Mas isso não é o pior. A verdade é que entre esses exóticos que nos vieram
pedir guarida, existem criaturas ainda mais monstruosas que resolveram
transformar o planeta num lugar de consumo: num Terrarium, a bem
dizer…”
“Estranhas coincidências”, observa João Barreiros a mergulhar agora na trama. “O Terrarium deve ter sido primeiro livro do mundo a usar o Euro como unidade monetária, é um dos primeiros a falar da invasão de migrantes em fuga de uma ideologia memética, a criar imensos campos de refugiados em órbita, a falar dos gostos literários dos alienígenas, a imaginar uma espécie viral que “converte” aqueles que contamina (um pouco como o islamismo radical)”.
Luís lembra depois que “o Terrarium surge em meados dos anos 90 quando “Europa” era um conceito estranho e novo. Um conceito que, para a alma lusitana, tinha de ser entranhado, pela sua estranheza – e que surge no final de um século a falar do império ultramarino português, das colónias e da posição de Portugal como grande nação mundial. O que, como bem se viu, era uma ilusão.” Sendo este, como explica, um “conceito novo, é natural que uma obra de época refletisse ou reagisse a essa mudança (e não foi a única, veja-se a Euronovela do Vale de Almeida, vencedor do prémio Caminho em 1999). Mas na boa e velha tradição da FC, ao invés de interrogarmos a novidade, contamos a história do seu fim. Porque só no fim se entende a história”, explica. Contudo, “diga-se de passagem que mais de 80% do livro se passa em Londres – prestes a deixar de ser “europa” – e na América do Sul, pelo que não podemos afirmar que este seja uma obra que reflita sobre a ‘Europa’, apenas que a usa convenientemente como pano de fundo).”
Poderia ter Terrarium outras vidas, noutras formas, em outros meios?… Luís diz que sim, observando até que no próprio texto “há muitas referências à BD, e inclusive a personagem da Triste Judite reflete uma publicação no formato de tiras de jornal (mais uma arte em vias de extinção). A extravagância visual do enredo e das personagens assim o permite – faria uma excelente série de BD ou de anime”, defende.
“Por mui estranho que isso possa parecer”, a FC portuguesa faleceu logo a seguir à publicação do Terrarium”, observa João Barreiros, que nota que “em vez deste ser a voz que daria origem a uma gloriosa renascença, foi de facto o fim dela”. De resto sente que, quando demonstraram “que escrever FC em português era possível, foi nesse instante preciso que se verificou a sua impossibilidade”. Para Luís, “a FC estritamente pensada enquanto plataforma para debater, recorrendo ao positivismo e ao método científico, a construção de sociedades futuras, ou precaver as possíveis distopias (ou atropelos civilizacionais) resultantes dos efeitos secundários do nosso conhecimento, não existe. Existe, sim, o carnaval dos efeitos especiais e dos enredos simplistas de cinema, mas sem nenhum questionamento sério das potencialidades e perigos que marcam o nosso dia-a-dia. Aliás, este é uma fraqueza global, não só lusitana (como sempre, refletimos o bom e o mau que vai lá fora). O que é uma pena. Se há plataforma que nos permitiria vislumbrar o que vai acontecendo no mundo, seria sem dúvida a FC”, conclui.
Já que a ideia vinha a jeito, perguntei ainda a ambos se gostariam de aplicar o conceito redux a outras obras da literatura de FC. E, já agora em quais gostariam eles mesmos de mexer… João Barreiros confessa que gostaria que “Cordwainer Smith estivesse ainda vivo para escrever mais contos na sequência dos Lords of Instrumentalito”, o mesmo dizendo “para o ciclo da Cultura do Ian M. Banks”. Luís gostaria de, “talvez, recriar a saga dos Lensmen de E. E. “Doc” Smith à luz da novíssima space opera (e já agora, com portugueses à mistura, porque não?)”. Ou de “escrever novamente o Solaris, do Lem, mas do ponto de vista do oceano senciente”. Contudo, “o que gostaria mesmo era de pegar naquele veneno do prazer de ler que é são as Viagens Na Minha Terra, do Garrett, enfiar os pobrezinhos do Carlos e da Joaninha num futuro catastrófico e fazê-los percorrer um equivalente dos jogos da fome (mas bastante mais feroz) com pancadaria, sexo, drogas, e um confronto final entre os bons e os maus – vingando assim aquelas atrozes semanas em que, jovem, fui obrigado a estudá-lo para o liceu”…