The Walking Dead, A Ascensão do Governador - Crítica no blogue O Papiro de Seshat

Depois de uma BD de culto, o mundo pós-apocalíptico de Robert Kirkman tornou-se numa premiada série de televisão, cujas virtudes vão muito para lá do nicho muito específico que ocupa na grelha televisiva.

Não se consegue aceitação a este nível em meios de comunicação radicalmente diferentes sem pelo menos algumas virtudes, e "The Walking Dead" rompe com o ethos zombie, transcendendo a linearidade da acção, violência gratuita, choque e gore. A luta desesperada pela sobrevivência do grupo liderado por Rick Grimes é uma interessante experiência da sociologia dos grupos, à medida que todos os princípios estruturantes do indivíduo são confrontados com um mundo onde todas as regras perdem a validade e a mente é o seu último bastião identitário perante o desaparecimento de toda a sociedade de sob os seus pés.

Ao mesmo tempo, as personagens são desenvolvidas com alguma profundidade em vez de mera matéria-prima para esvisceramento e desmembramento pornográfico num rodízio canibalesco. Nada contra tal coisa; cada um é como cada qual, e se querem andar por aí a feder a excrementos, decrépitos e a babarem-se, enquanto procuram carne fresca para morder, não é nada que nunca se tenha visto no Intendente e já ninguém liga.

Contudo, poucas personagens são tão estruturantes para o futuro do grupo de Rick quanto "O Governador", Philip. Num mundo onde todos são potenciais antagonistas, "O Governador" é supremo entre eles, o maior perigo externo que o grupo enfrenta desde a epidemia. A sanidade do autocrata de Woodbury é muito cedo colocada em causa, tornando-o um caso de estudo para lá de categorizações entre "bem" e "mal".

Tal como Rick, "O Governador" tem aquela qualidade decisiva de se afirmar nas crises, e arcar com as consequências das decisões que ninguém quer tomar. Talvez por isso seja impossível juntar ambos num único contínuo do espaço-tempo sem entrarem num frenesim destrutivo só comparável ao de um babuíno furioso numa loja de cristais.

Ao lerem este livro, talvez entendam que ao contrário de Rick, ainda a lutar por uma réstia do seu ser normal, Philip pode perder tudo até ao mais absoluto nada e "O Governador" é uma fénix renascida. Aquele Philip - filho, irmão e pai - que existia no início do livro, pode bem já não existir no seu final. No seu lugar, ascende "O Governador".

Entre a paz ilusória com os "reality checks" que mostram o ridículo de desejar um pouso para um simulacro de vida normal, "A Ascensão do Governador", mantém a acção em andamento. Philip é o elemento alfa do grupo, um sobrevivente, e prevalecerá. Ninguém o desviará do seu caminho: nem Nick, amigo de longa data, nem o seu irmão Brian, dependente, mentalmente frágil, desesperando até às últimas consequências pela aprovação impossível do seu irmão mais velho. E dir-se-ia que o destino que o livro lhe reserva não é mais do que uma nova expressão da sua covardia.

Para nos trazer esta história de ascensão em tempos de queda, Kirkman juntou-se a Jay Bonansinga, romancista de horror que, tanto quanto sei, não tem ainda nada publicado em Portugal. O estilo de escrita, se não o soubessem de antemão, facilmente o atribuiriam ao guião de uma BD: muito visual, de onomatopeias abundantes, o modo como as cenas são dispostas no presente verbal, etc.

Portanto, pesar de algumas excelentes tiradas, a narrativa é simples e eficaz, sem pretensões estilísticas. O foco é na história, tensa e envolvente, guardando os seus trunfos muito bem até ao imprevisível clímax final, um desses derradeiros desfechos que justificam a leitura até ao fim e nos entregam a recompensa numa bandeja de prata.

"A Ascensão do Governador" parece ser apenas a primeira de várias prequelas que desvendam o passado de personagens-chave do universo "The Walking Dead". Venham mais, e venham depressa; os fãs de Kirkman não deixarão ter por ele outros níveis de respeito graças a esta acolada.

Publicado em 3 Dezembro 2012

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