Últimos Ritos - Crítica em As Histórias de Elphaba

Enquanto leitora, procuro em todas as histórias um ponto de encontro, um laço afectivo que me aproxime da ficção e que me transporte para as páginas, um laço que fundamente a sua concepção para mim e que me permita transcender o simples acto de ler. Últimos Ritos conseguiu-o de forma bastante profunda, conseguiu que a sua narrativa se entranhasse no meu estado de alma carregando-o com um peso e uma intensidade estranhos, que me provocaram a imensa necessidade de fugir à sua realidade, uma realidade que me envolveu, afogou, plenamente.
 
Para quem procura algo diferente, este livro será uma das minhas sugestões durante bastante tempo, uma sugestão assertiva para quem deseja uma ficção histórica credível e com uma carga emocional forte, tendencialmente dramática e, pela sua densidade trágica, muito singular, especial. Hannah Kent tem uma escrita diferente, bela, uma escrita que consegue conduzir o leitor a um distanciamento social e temporal quase extremo, imprimindo uma estranheza espantosa que se crava nas sensações de quem lê, até que as relações ou o clima descrito nos consumam.
 
Exceptuando a sua previsão de mau-agouro, clara e imutável, este enredo é tão simples que chega a ser arrepiante. Ele é tudo aquilo que está descrito na sinopse; uma mulher é condenada à morte e enquanto aguarda a concretização da sentença é levada para a casa do xerife, que mora mais perto do padre que a mesma escolheu para lhe dar os últimos conselhos, para a guiar para a salvação, para uma espécie de extrema-unção. Enquanto dialoga com o padre, enquanto absorve o peso do seu fado, a narrativa leva-nos ao passado e dá-nos a conhecer a história desta mulher calada, misteriosa, aparentemente tão distante daquela que matou, brutalmente, à facada, o seu amo. E, céus, custou-me filtrar esta simplicidade, a natureza pura e ao mesmo tempo putrefacta deste mundo tão distante e tão próximo daquele que conheço.
 
Tenho receio de falar das personagens desta história por dois motivos, primeiramente porque senti alguma dificuldade em conectar-me com as vidas da ficção, mesmo com a protagonista, pelo abismo cultural interposto entre o que eu sei e o que me foi dado a ver e  depois porque a forma como são reveladas é, em si, parte da narrativa, chegando a compreensão com o desenvolvimento do texto e o abraçar das existências mais perto do final, quando a veracidade das palavras me tocou a consciência da realidade descrita.
Agnes, a personagem principal, é bastante complicada, fechada em si mesma, presa às memórias de quem viu e viveu mais do que consegue compreender e conceber. Como todos nós, é alguém perdido em múltiplas questões que morrerão sem resposta, é alguém que dúvida do que outros lhe declaram, procurando as suas próprias verdades e apoiando-se no seu conhecimento, adquirido com a experiência de vida. Quando reflicto sobre esta mulher emocionou-me, actualmente muitos dos que existem são uns privilegiados e na viagem que me proporcionou ela recordou-me dos outros, dos que não foram e dos que não são.
 
Os restantes intervenientes são, maioritariamente, o retrato daquele povo e daquela cultura, gentes que tentamos compreender e que soam constantemente como notas dissonantes. São sobreviventes, descrições complexas do desconhecido nos gestos e atitudes, são frios, duros e temeroso das muitas crenças e dificuldades que enfrentam com o decorrer das estações. Tóti, o padre, é de uma inocência em relação ao mundo que faz doer, através da sua relação com Agnes vemos o seu crescimento como homem, um homem que vai compreendendo as pessoas e evoluindo com o decorrer da história. Igualmente, gostei de Margrét, gostei de Steina e, mais tarde, até gostei de Sigga, gostei destas mulheres/crianças talhadas por homens, muito mais inteligentes do que permitem antever e, ainda assim, com um fundo pueril.
 
Para lá da intriga, para lá da história da última mulher condenada à morte na Islândia e dos contornos controversos que envolveram o seu caso, este é um livro que oferece acima de tudo um olhar sobre o sistema judicial e religioso da época e, sobretudo, sobre o seu povo. Em suma, é um livro muito cru sobre as pessoas e a sua natureza, sobre a sua consciência a respeito dos outros numa altura em que a percepção da humanidade sobre o próximo, sobre o certo e errado, neste ponto do globo, era muito peculiar – dá que reflectir.
 
Não vos vou mentir, confesso que senti muito mais do que li esta história… permitir-me a tal pareceu-me a melhor forma de a abordar. Dito isto, reafirmo, emocionei-me em alguns momentos e carreguei comigo uma tristeza durante o folhear que ainda permanece em mim, ainda me creio perdida nos acontecimentos rudes, ásperos como a mão que lavra a terra, que alimenta e que mata o pasto, actos contínuos de factos reais, transparentes no que são porque não podem ser de outra maneira. Não foi uma leitura interrupta, pelo contrário, peguei-lhe apenas quando tinha determinado estado de espírito, assim sugiro-a aos que sabem o que encontrar nestas páginas desiguais que são o que são e, no seu género, são extremamente bem construídas.
Quando à escrita belíssima de Hannah Kent, esta tem um ritmo e uma cadência hipnotizantes, provocando a introspecção. É, igualmente, nostálgica, quase poética, despreocupada com a susceptibilidade de quem lê e procurando tocar a sua sensibilidade através da realidade apática e imperturbável que dá a ver. Tratasse de uma autora que espelha bem o trabalho de investigação realizado para dar vida a esta obra maravilhosa.
Enfim, este livro pode ser lido sob o calor dos trópicos numa praia repleta de pessoas mas, acreditem, sentirão o frio e o silêncio a entranhar-se na vossa pele, sentiram e calma e o vazio de lugares que sonharão ver e que, se forem como eu, vos farão chorar. Bem, eu sou uma leitora muito sensível.
 
Uma grande aposta do Grupo Saída de Emergência para os fãs de ficção histórica a que, muito dificilmente, qualquer leitor ficará indiferente.
Publicado em 5 Junho 2015

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