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Despojadxs… de Liberdade?

O que há de errado em mudar as coisas?

Em 1984, The Lathe of Heaven (O Tormento dos Céus) foi alvo de uma audiência pública numa cidade perto de Portland. Em causa estava a adequação do romance ao ensino secundário. O caso para que fosse excluído do plano de leitura foi defendido por um homem não identificado por Ursula K. Le Guin, enquanto a defesa esteve a cargo do Departamento de Inglês da escola. Le Guin, sentindo-se bem representada, não interveio na sessão, mas fez um relato para um jornal local. Os argumentos apontados para a exclusão do romance aparentavam esconder o objetivo principal que, segundo pareceu à autora, era censurar um livro que retratava uma relação entre uma mulher negra e um homem branco. Fosse racismo a razão real ou não, o certo é que o livro causou desconforto. Ora, Joyce Carol Oates declarou algures que a função da arte não é dar conforto, mas sim provocar, perturbar, incitar emoções e expandir horizontes que não prevemos e que podemos até nem desejar alcançar.  Não é esse, pois, o objetivo da literatura fantástica, da ficção científica, que, livres de convenções, provocam, alteram, desmontam, invertem, subvertem, libertam?

A Viagem: Portland, Oregon, Terra, 2002

Em 1980, Asimov ousou denunciar «o culto da ignorância» latente na sociedade americana que era, e é, corroída por uma insistente veia anticiência e anticultura. Essa veia palpita sempre que um livro é censurado, porque, livro a livro, morre o pensamento crítico, a imaginação, o sonho e a liberdade. Na era do anti-intelectualismo, das notícias falsas e dos «factos alternativos», em que reinam oxímoros como este, viajemos para a futurística Portland de The Lathe of Heaven, na qual Le Guin recorreu à argamassa das utopias para construir uma distopia: o sonho.

The Lathe of Heaven conta a história de George Orr, um jovem que recorre às drogas para evitar dormir, porque os seus pesadelos têm tendência a tornar-se realidade. Como toxicodependente, é submetido ao cuidado do psiquiatra William Haber, que, apercebendo-se dos poderes de Orr, inicia experiências com o objetivo de resolver problemas societais como o racismo e a sobrepopulação. Contudo, de boas intenções… estão as distopias cheias…

As Vozes: William Haber & George Orr

Fugindo às dicotomias simplistas, Le Guin subverte hierarquias: aquele que tem poder e capacidade para salvar o mundo não só não o quer fazer, como fica refém daquele que, aparentemente, quer ser o herói. Este, por sua vez, só recorrendo à manipulação e ao controlo da mente do primeiro consegue poder e influência by proxy. Entre opressor e oprimido, sonho e pesadelo, permanece a questão: As intenções justificam os meios? Será Haber, de facto, um vilão? O médico instrumentalizou o paciente, manipulou e beneficiou da assimetria hierárquica, mas não foi por uma boa razão? Fossemos Haber, seríamos capazes de resistir à tentação, à hubris dos heróis? O que estaríamos dispostxs a fazer ao abrigo de uma «boa causa»? Talvez censurar livros e limitar liberdades?

Le Guin semeava a dúvida nas suas histórias. Não é, pois, curioso que um livro que explora os perigos do controlo da mente tenha sido alvo de sabotagem?

«A censura é absolutamente antidemocrática e elitista, pois o censor diz: “Tu não sabes o suficiente para escolher, mas eu sei. Por isso lerás apenas aquilo que eu autorizo e nada mais”», escreveu Le Guin. Já a democracia afirma que ser livre é aprender a escolher. Portanto, porque não ler mais ficção científica e escolher lutar para que não sejamos jamais Despojadxs de Liberdade?

Em retaliação à censura de The Handmaid’s Tale, Margaret Atwood anuncia o leilão de uma cópia do livro que é impossível incinerar.


«Os livros que o mundo considera imorais são os livros que espelham ao mundo a sua própria vergonha.» Oscar Wilde 

«Existe um culto da ignorância nos Estados Unidos, e sempre existiu. A corrente do anti-intelectualismo é uma ameaça constante, serpenteando pela nossa vida política e cultural, alimentada pela falsa noção de que democracia significa “a minha ignorância vale tanto quanto o teu conhecimento”.» Isaac Asimov

«Uma pessoa que acredita, como ela, que as coisas se encaixam, que há um todo do qual se é uma parte, e que, ao se ser parte, se está inteiro; essa pessoa não tem qualquer desejo de fazer-se Deus. Só quem nega o próprio ser anseia fazer-se Deus.» (Le Guin, in The Lathe of Heaven)

«Que pessoa sã poderia viver neste mundo louco e não ser também ela louca?» (Le Guin, in The Lathe of Heaven)


Argumentos pela exclusão de The Lathe of Heaven do plano de leitura, conforme apresentado em audiência pública e descrito por Le Guin:

  1. Ideias confusas e estrutura sintática pobre.
  2. Uma referência a homossexualidade.
  3. Uma personagem que transporta consigo um frasco de brandy na bolsa e alude à falta de amor e à negligência da mãe.
  4. A alegada defesa da autora de religiões não-cristãs (Le Guin confessa-se confusa em relação a este ponto).
  5. Comparação entre o romance e comida de plástico, supostamente porque se trata de ficção científica.

(«Whose Lathe?», in Dancing at the Edge of the World: Thoughts on Words, Women, Places, 1989, 123-126)

Publicado em 1971, The Lathe of Heaven surgiu como uma homenagem a Philip K. Dick e incorpora muitas das características da distopia clássica: cenário apocalíptico, caos social, controlo da população através de fármacos, desespero, entre outros aspetos…

«O que há de errado em mudar as coisas? Pergunto-me se essa sua personalidade centrada na autoanulação o leva a olhar as coisas de forma defensiva. Quero que tente deslocar-se de si mesmo e tente observar o seu próprio ponto de vista de fora, objetivamente. O George tem medo de perder o equilíbrio. Mas a mudança não precisa de desequilibrá-lo; afinal, a vida não é um objeto estático. É um processo. Não há como permanecer parado. Racionalmente, o George sabe isso, mas emocionalmente recusa-se a aceitá-lo. Nada permanece igual entre um instante e o seguinte, não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. A vida… a evolução… o universo inteiro do espaço/tempo, matéria/energia… a própria existência é, na sua essência, mudança.» (Le Guin, in The Lathe of Heaven)

Amostra de livros banidos em algumas escolas nos Estados Unidos em 2022:

The Complete Maus de Art Spiegelman

All Boys Aren’t Blue de George M. Johnson

The Bluest Eye de Toni Morrison

Monday’s Not Coming de Tiffany D. Jackson

The Hunger Games Trilogy de Suzanne Collins

The Handmaid’s Tale de Margaret Atwood

Snow, Glass, Apples de Neil Gaiman

His Dark Materials de Philip Pullman

A Wrinkle in Time de Madeleine L’Engle

Carrie de Stephen King

Próximo Destino: Anarres

Próximo Emissário: Shevek

Os Despojados

A jornada de um homem em busca da reconciliação de dois mundos

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Uma versão reduzida deste artigo pode ser encontrado na revista BANG! n.º 33, publicada em maio de 2023.

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