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A Guerra dos Tronos de George R. R. Martin

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Primeiro conquistou os tops americanos de literatura fantástica. Depois, os tops de literatura generalista. A seguir, conquistou tops um pouco por todo o mundo, incluindo os portugueses. Por fim, chegou à televisão. E voltou a conquistar toda a gente. É um dos maiores fenómenos literários dos últimos anos, e nós vamos tentar perceber porquê…

Nunca houve tanta curiosidade pelo mundo da edição como agora. Talvez devido à massificação da Internet e com tudo o que isso implicou – a blogosfera, os fóruns, as redes sociais, os sites – os leitores nunca tiveram a possibilidade de contactar tão directamente as editoras como agora. E deste processo tem nascido uma curiosidade natural pela forma como se realiza a edição em Portugal. Como todos os negócios, tem os seus segredos que é preferível não revelar, mas, de vez em quando, abrimos uma janela para o trabalho diário que fazemos, de modo a revelar alguns dos detalhes em torno da construção do nosso catálogo. A construção de um catálogo. Essas são as palavras mágicas que fascinam tanto qualquer editor com vocação para esse trabalho. Tem os seus espinhos e cada editor tem o seu próprio muro das lamentações por todos os fracassos e prejuízos.

George R. R. Martin: O fenómeno de vendas

No entanto, no meio de um negócio cada vez mais competitivo, poder publicar um autor que gostamos é capaz de ser uma das maiores satisfações. E ter sucesso com um autor que gostamos e publicamos é a cereja em cima do bolo.

Foi o que aconteceu com George R. R. Martin, o autor das Crónicas de Gelo e Fogo, cujo sucesso actual ajudou a garantir algum bem-estar à colecção BANG!. Hoje, fala-se em «fenómeno George R. R. Martin», um sucesso à escala mundial, que conquistou leitores e livreiros. As encomendas de livros não param, e acreditamos que ainda estão longe de se esgotar. Dois factores combinaram-se para garantir este extraordinário ano a Martin: a estreia da série A Guerra dos Tronos, uma adaptação da HBO, que triunfou nas audiências, e a publicação do muito aguardado 5.º (mas não último) volume das Crónicas de Gelo e Fogo, A Dance with Dragons (A Dança dos Dragões Os Reinos do Caos).

Se George R. R. Martin já era um nome consagrado nos reinos da literatura fantástica, explodiu para lá dos seus limites e, à semelhança da sua personagem Daenerys, conquistou leitores e espectadores uns atrás dos outros. Mas voltemos um pouco atrás no tempo para vos mostrar como tudo começou em Portugal, de modo a compreenderem o trabalho que envolveu da parte de todos os colaboradores, os riscos, os anos de espera e a fé que nunca foi perdida.

A história do editor contada pela sua assistente

Muitos sabem que a editora Saída de Emergência surgiu no mercado em 2004, criada por dois irmãos, Luís Corte Real e António Vilaça. Devido a uma conjunção de literatura comercial apelativa e sólida (e a exploração de um nicho muito alternativo, o fantástico), capas dinâmicas e uma boa distribuição, no espaço de um ano, a editora tinha ganho solidez suficiente para os dois irmãos se dedicarem em exclusivo à editora. Muita paixão pelos livros e uma atitude muito mais transparente e próxima ao leitor marcaram a diferença. Não é uma editora conhecida pelos nomes das pessoas que editam, mas pelos autores que publica. Luís Corte Real era já um grande fã de George R. R. Martin, muito antes de ter fundado a editora; uma viagem a Londres e a compra fortuita de Game of Thrones, numa mega-livraria londrina, iniciou a descoberta deste autor, ainda na década de noventa.

Uma vez que parte do catálogo da SdE era dedicado à literatura fantástica (H. P. Lovecraft e Edgar Allan Poe foram os primeiros nomes clássicos a serem publicados), os agentes faziam muitas ofertas de obras deste género ao editor. Em 2005, a agente espanhola de George R. R. Martin começa a realizar as primeiras propostas. Nas palavras do Luís, «ela estava desesperada para vender os direitos dos livros, ninguém queria aquilo». E embora gostasse muito do autor, tinha noção de que o mercado português ainda não era capaz de absorver uma saga daquelas dimensões (cada livro a roçar 800 ou 1000 páginas na edição original), pelo que disse à agente para voltar a contactá-lo daí a um ano.

Marketing, a quanto obrigas

Quando a situação da editora começou a estabilizar em termos financeiros (e o mercado editorial ainda não tinha sofrido metade do que viria a sofrer desde 2008), Luís Corte Real sentiu que era o momento certo para apostar numa saga que até vendia bastante bem nos EUA e alguns países europeus. Não foi uma decisão inteiramente movida por paixão, pois começaram os planos para uma campanha de marketing massiva, em torno do lançamento do 1.º livro. Jorge Candeias foi o tradutor requisitado para a tradução do 1.º título, divido em dois volumes, na edição portuguesa. A divisão em dois volumes tornava os livros muito mais fáceis de manusear, mais baratos e não afugentaria tanto os leitores. Enquanto o tradutor e revisora, Idalina Morgado, discutiam os termos e as opções linguísticas, a editora começou os planos de marketing e surgiu com ideias ambiciosas e inovadoras.

Montras Bertrand foram requisitadas para a promoção do 1.º volume e foram colocados um escudo, uma couraça, um montante e duas armações de veado, objectos que pertenciam ao próprio Luís Corte Real e que os emprestou à Bertrand. Mas a estratégia que prometia dar mais que falar era, sem dúvida, o famoso cupão na badana que podia ser preenchido, recortado, enviado à editora e recebia-se assim a oferta de outro exemplar de A Guerra dos Tronos.

Uma tiragem impressionante para a altura foi impressa e o livro foi lançado nas livrarias em Setembro de 2007. Escusado será dizer que o cupão e as montras causaram sensação. Sem exageros, a editora ofereceu cerca de 2000 livros, no âmbito dessa promoção. Ainda hoje, em 2011, recebemos um ou outro cupão a solicitar a oferta de mais um exemplar.

Muitos leitores portugueses que se renderam pela primeira vez a George R. R. Martin já não se devem lembrar do posfácio escrito pelo editor, posfácio esse bastante revelador dos riscos inerentes a esta publicação:

Portugal é um país pequeno e o mercado da literatura fantástica é marginal. Será possível levar esta série até ao fim? Fará sentido? Depois de muito equacionar, acreditamos que sim. E a prova é que já comprámos os direitos para toda a série e não apenas para o primeiro volume.

O pedido por mais leitores é quase hilariante no último parágrafo:

Obrigado/a por ter lido A Guerra dos Tronos. Fazemos votos para que esteja desejoso/a por ler o segundo volume e que nos ajude a fazer desta série um grande sucesso, convidando familiares, amigos, vizinhos e colegas a lerem-na.

O ritmo de publicação foi essencial para que os leitores se mantivessem fiéis à série. O 2.º volume, A Muralha de Gelo, foi lançado três meses depois, em Novembro de 2007. O terceiro volume, A Fúria dos Reis, em Fevereiro de 2008 e assim sucessivamente. A partir do 4.º volume, deu-se o inesperado: uma entrada fugaz nos tops que começou a provar que a série estava a demonstrar vendas sustentáveis.

Os primeiros frutos

Numa entrevista ao Diário Digital, publicada online em Setembro de 2011, no âmbito do sucesso de George R. R. Martin em Portugal, Luís Corte Real revela que «na altura, apostámos em capas distintas, marketing e promoções fortes, imensa promoção na Internet e as vendas acabaram por ser boas».

As vendas nunca foram más e provaram que uma estratégia bem planeada dá frutos a médio e longo prazo. Felizmente, não conheceu o mesmo destino que uma outra série de fantasia de sucesso internacional, A Roda do Tempo, de Robert Jordan, que acabou por ver a sua publicação cancelada após quatro volumes.

Em poucos meses, As Crónicas de Gelo e Fogo começaram a gerar uma base de fãs, e foi a própria editora que os acolheu a todos e criou-lhes uma casa na Internet, no fórum George R. R. Martin (que, mais tarde, se expandiu para se tornar o fórum BANG!, o fórum oficial da colecção, gerido pela editora). Abriu as portas em 2007 e a iniciativa ajudou a solidificar, ainda mais, a relação entre os leitores e a editora, ajudou a divulgar as novidades e a criar um ambiente entusiástico em torno desta saga.

Nem tudo foi executado na perfeição; a 1.ª edição do 4.º volume tinha uma sinopse com spoilers que revelavam toda a história do livro (foi substituída numa edição posterior); esse 4.º volume foi o que apresentou na lombada o título errado; o 6.º volume foi impresso com o ISBN errado e foi necessário colar autocolantes com novo código de barras na tiragem. Todos os erros foram corrigidos, mas, na altura, foram fruto da pressa.

George R. R. Martin visita Portugal 

As minhas próprias memórias começam a infiltrar-se, neste momento da narrativa. O ano de 2008 foi espectacular para a promoção desta saga por um motivo muito particular: o autor planeava uma tour europeia, nesse ano, e iria estar presente no evento da Semana Negra, em Gijón, Espanha. O Rogério Ribeiro e eu, organizadores do Fórum Fantástico, sabendo desse facto, começámos a colocar a hipótese de uma deslocação do autor a Portugal.

Após obter patrocínios e garantir o apoio do Luís Corte Real, fizemos o convite ao autor que prontamente aceitou.

Esse foi o ponto alto desse ano. Martin ainda não era um autor mega-bestseller, nem muito conhecido fora da literatura fantástica, e, embora já tivesse alcançado um bom patamar, ainda era considerado um escritor de nicho. A sua presença durou dez dias em Portugal, no pico de um mês de Julho muito quente. O 5.º volume, A Tormenta de Espadas, iria ter um pré-lançamento na sala do El Corte Inglès, a 4 de Julho de 2008. E eu, que estava à beira de me demitir de um emprego lastimável na altura, tinha sido convidada para apresentar o autor e conversar com ele. Aceitei apenas porque julguei que falaríamos para uma plateia de dez a quinze pessoas. Os deuses decidiram rir-se da minha cara e encheram a sala com cerca de trezentos leitores muito entusiasmados. O choque foi geral. Deve ter sido então que nos apercebemos todos de como se criara uma comunidade de leitores e fãs muito forte em torno das Crónicas.

Eu, o Rogério e o Luís temos excelentes memórias dessa semana com o George R. R. Martin. Uma pessoa afável, nada pretensiosa, imensamente talentosa com as palavras, entusiasmada, disponível para ser arrastado até ao topo do Castelo dos Mouros, em Sintra, ou a perder-se num carro às voltas, em direcção ao Porto.

Conheceu Lisboa inteira sem um queixume, mesmo apesar de algumas das suas dificuldades em andar muito. É um homem com um espírito tremendamente aventureiro e a sua amizade tornou-se inestimável para todos nós.

Nessa mesma semana, perdi o meu emprego, mas graças ao meu envolvimento nos eventos, as portas da Saída de Emergência abriram-se para mim e, em Setembro de 2008, tornei-me assistente do Luís Corte Real.

A longa espera

Os livros continuavam a ser traduzidos incansavelmente pelo Jorge Candeias, sem nunca falhar um único prazo. O sucesso constrói-se com base no profissionalismo de todos os colaboradores e o nosso tradutor nunca soçobrou sob o peso dos calhamaços.

O Festim dos Corvos O Mar de Ferro foram lançados em 2009; chamo-lhes os livros da ressaca devido aos eventos culminantes de A Glória dos Traidores, um livro glorioso em todos os sentidos. E depois começou também a espera para os leitores portugueses.

Como leitora, a desvantagem de ler uma excelente série é o facto de termos de esperar que o autor conclua o próximo volume. No caso de George R. R. Martin, a espera foi demorada para os leitores das edições inglesas, em parte devido ao facto de o enredo ter atingido um ponto crucial que necessitava de muito labor na escrita para ser ultrapassado. Muitos leitores americanos começavam a desesperar e a insultar o autor.

Mas algo de sensacional estava em preparação. Em 2007, George R. R. Martin anunciara no seu blogue que os direitos de adaptação televisiva das Crónicas tinham sido comprados pelo canal norte-americano, a HBO.

Foi só em 2010 que a febre pela série começou a atingir o pico quando se divulgaram os números envolvidos na produção e os nomes dos actores. Começou então um novo capítulo neste fenómeno.

A Guerra dos Tronos na televisão

No ano de 2010, a HBO arrancou uma formidável máquina de marketing que iniciou a divulgação da série literária em todo um novo patamar. Sendo um canal norte-americano conhecido pela qualidade das suas séries, tornou-se rapidamente óbvio que esta seria uma das grandes apostas do canal para 2011. Ao lado de David Benioff e D. B. Weiss, George R. R. Martin trabalhou como produtor executivo e ajudou a mobilizar a sua massiva comunidade de fãs que manifestou todo o seu entusiasmo pela concretização da série.

Ao mesmo tempo, começavam os rumores de que o autor estaria prestes a finalizar, após quase cinco anos, o manuscrito do próximo volume das Crónicas, A Dance with Dragons, um livro que sabíamos que iria retomar as aventuras de várias personagens cruciais como Tyrion Lannister, Daenerys Targaryen e Jon Snow. Por cá, as vendas continuavam ao mesmo ritmo moderado de sempre, alheias às movimentações dos produtores da série. A série tinha data de estreia marcada nos EUA para 17 de Abril de 2011 e a imprensa norte-americana não foi imune à intensidade dos fãs de Martin que juraram que era uma das melhores séries de fantasia de sempre.

Os dragões voltam a voar

A 27 de Abril de 2011, uma semana depois da estreia do episódio-piloto de Guerra dos Tronos, George R. R. Martin publica a foto de um King Kong morto, no seu blogue.

Era o anúncio tão desejado por milhares de leitores de que, finalmente, King Kong (o apelido «carinhoso» que George R. R. Martin deu ao seu livro das Crónicas) fora derrotado e a obra finalmente veria a luz do dia nesse mesmo ano.

E esse dia lançou o caos na parte do planeamento editorial da Saída de Emergência.

Alterações tinham de ser feitas, dezenas de e-mails trocados com colaboradores, agentes e a distribuidora, planos de marketing teriam de ser pensados, uns livros adiados, outros antecipados para dar espaço ao King Kong. E era imperativo obter o manuscrito com a maior brevidade possível, manuscrito esse que tinha data de publicação prevista a 12 de Julho.

Após alguma insistência e muitas negociações, foi-nos cedido o ficheiro com a 1.ª metade do livro na língua inglesa. Jorge Candeias lançou-se de corpo e alma à tradução, e nessa altura, nós fomos literalmente afogados no sucesso da série televisiva que fez explodir as vendas em Portugal. A partir do mês de Junho, as encomendas dos oito volumes das Crónicas não paravam e entraram num ritmo alucinante. Todos, de repente, queriam ler os livros.

Tendo uma equipa editorial relativamente pequena, o impacto simultâneo da produção em tempo recorde de A Dança dos Dragões e o sucesso de vendas ascendente dos volumes anteriores, tornou-se sufocante e brutal. Tivemos um Verão esplêndido de trabalho. Por essa altura, descobrimos que o canal SyFy Portugal tinha os direitos exclusivos de exibição da série no país e começaram os contactos e parcerias de forma a promover ainda mais este autor na imprensa nacional. A fantasia de repente ganhara uma nova expressão em Portugal e extrapolou as fronteiras do género.

O trabalho de marketing foi também bastante exaustivo e obrigou a alguma criatividade para satisfazer as necessidades dos livreiros; marcadores, postéres, promoções, descontos, ofertas de livros, etc., e todos os dias surgiam, e ainda surgem, novas ideias. A nossa tradução do 9.º volume foi lançada a 9 de Setembro de 2011, e foi a segunda tradução mais rápida a ser lançada no mundo depois da edição croata. A Dança dos Dragões entrou directamente para o primeiro lugar dos tops nacionais e já temos data de publicação do próximo volume, Os Reinos do Caos, marcada para 27 de Janeiro de 2012.

Os timings foram infalíveis em todo este processo. Não tivesse sido o timing dos acontecimentos, muitas destas coisas não teriam acontecido. Neste Verão, o canal SyFy lançou a sua própria divulgação, preparando o terreno para a estreia da série em Portugal, que aconteceu no dia 17 de Outubro, estreia essa que promete renovar o interesse de novos leitores. Os segredos que tornaram George R. R. Martin um bestseller em Portugal? Estão todos nesta história e basta lê-la com atenção. Houve uma dose de sorte, mas houve também imenso trabalho envolvido e boa vontade de todas as partes. O fenómeno ainda continua e não se irá esgotar tão cedo devido à continuação da série televisiva, que irá estrear a 2.ª temporada em Abril de 2012, e ao sucesso de uma boa história que ainda não foi concluída.

*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico. Artigo retirado da revista BANG! n.º 11, publicada em fevereiro de 2011.

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Fazedores de Mundos, ou Uma Brevíssima História do Nascimento de Dungeons & Dragons

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Quanto mais recuarmos no tempo, mais a história do aparecimento dos role playing games (RPG) se confunde com a do seu primeiro e mais famoso jogo: Dungeons & Dragons (D&D). Como fenómenos culturais, os jogos de personagem têm a característica invulgar de uma origem clara e bem conhecida, ainda que complexa.

Sem prejuízo do notável golpe de inspiração que representou a criação do primeiro RPG, os autores não partiram, como é evidente, de um vácuo. Pelo contrário, as suas raízes distantes, mas substantivas, remontam ao início do século XIX e encontram-se no domínio relativamente improvável da instrução militar prussiana.

Este texto pretende apresentar um resumo genealógico, uma espécie de livro de linhagens, do D&D, até ao momento da sua concepção. Como adenda, segue-se um breve apanhado da história dos primeiros anos de RPG em Portugal, traçando os paralelos possíveis, sem perder de vista a escala e o contexto próprios.

CONFLITOS LILIPUTIANOS

Sobre a concisão abstracta com que o xadrez destila os preceitos da guerra, o entomólogo alemão Johann Christian Ludwig Hellwig (1743-1831) encetou uma mudança de paradigma que ecoa até aos nossos dias, ao inventar o Kriegsspiel (literalmente, «jogo de guerra»). A distância do venerável antepassado foi aumentando com os aperfeiçoamentos feitos ao longo da vida do autor, até às regras de 1803 do seu «jogo táctico», em que aconselha um monstruoso tabuleiro de 1.617 casas e 940 pelas de jogo (e que, não a despropósito, o próprio Hellwig se encarregava de vender).

No entanto, foram os militares Georg Leopold von Reiswitz (1760-1828) e o seu filho Georg Heinrich (1794-1827) que reformularam, difundiram e imortalizaram o Kriegsspiel, ao assegurarem a sua adopção nas academias militares prussianas como instrumento de aprendizagem e treino estratégicos, inaugurando, para todos os efeitos, uma tradição pedagógica perene. Do ponto de vista das inovações mecânicas, relevam as tabelas probabilísticas, os mapas e as unidades à escala, o uso de dados para simular a incerteza e a figura imprescindível do juiz, guardião da «ideia geral» do jogo e garante imparcial da aplicação das regras; mutatis mutandis, um mestre de jogo.

Apesar do patrocínio e do uso que recebeu desde então, o Kriegsspiel dos Reiswitz não deixou de ser criticado e apurado ao longo dos anos, desde logo pela sua complexidade e extensão. Destes contributos, talvez o mais significativo para nós, tenha sido o do general Julius von Verdy du Vernois (1832-1910), cuja simplificação preconiza o quase total abandono dos cálculos matemáticos e outras regras «duras» em prol de um diálogo entre os jogadores e o juiz.

Já é, portanto, possível reconhecer no Kriegsspiel algumas características dos jogos de estratégia (e de personagem) modernos, mas foi a popularização de brinquedos militares no final do século XIX, em especial soldadinhos de metal pintado, que transferiu para a esfera lúdica aquilo que, até então, fora um puro exercício de formação militar.

Neste registo, por exemplo, há relatos de jogos de guerra inventados e organizados pelo autor de A Ilha do Tesouro, o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), cuja saúde débil o levou a desenvolver desde pequeno um carinho especial pelos seus «leaden soldiers» (ver o poema The Land of Counterpane).

No entanto, o principal marco deste novo gosto, geralmente considerado o precursor dos jogos de guerra modernos, surge pela mão de outra figura literária de renome, o escritor H. G. Wells (1866-1946). Em Little Wars (1913), Wells descreve regras relativamente simples para simular todo o tipo de batalhas, recorrendo a soldados, obstáculos e terreno em miniatura. Num tom provocatório e bem-humorado, as «pequenas guerras» dirigem-se a «rapazes dos 12 aos 150 anos e ao tipo de raparigas mais inteligentes que gostam dos jogos e dos livros de rapazes». Em absoluto contraste com o Kriegsspiel, incentiva-se a criatividade e o prazer do jogo e da imaginação juvenil.

Em linha com as suas convicções pacifistas, Wells acreditava que o seu jogo serviria não apenas para divertir, mas também para demonstrar os horrores da guerra, já que, a qualquer soldado em potência, bastaria «jogar três ou quatro vezes às Pequenas Guerras para entender o tremendo disparate que é a Grande Guerra». Como sabemos, as suas palavras tristemente optimistas e ingénuas foram abafadas pelas explosões de duas guerras mundiais.

OMBROS DE GIGANTES

Um dos jovens entusiastas deslumbrado pela descoberta dos novos wargames foi Ernest Gary Gygax (1938-2008). Nascido em Chicago, Gygax mudou-se em criança para a pequena e pacata cidade lacustre de Lake Geneva, no Wisconsin. A sua paixão por jogos de toda a espécie só encontrava rival na avidez com que consumia uma dieta literária rica em pulp, generosamente guarnecida com romances históricos de aventuras e temperada q.b. com ficção científica (ver «Espada  & Feitiçaria & Dados», BANG! n.º 18).

Em 1967, Gygax foi co-fundador da International Federation of Wargaming, um clube regional de jogos (a designação transfronteiriça era manifestamente optimista, ao jeito norte-americano). Nesse âmbito, em 1968, alugou o Salão de Horticultura de Lake Geneva para receber uma das primeiras convenções dedicadas a jogos de guerra a que decidiu chamar, por abreviatura, Gen Con. O encontro, com cerca de 100 participantes, foi considerado um sucesso, na medida em que as receitas permitiram, à justa, cobrir todas as despesas (a convenção, que actualmente se realiza em Indianapolis, contou, em 2016, com mais de 60.000 visitantes).

Determinado a realizar a sua ambição, em 1970, despediu-se do emprego numa seguradora e, com um acto de coragem ou insensatez financeira, dedicou-se à criação de jogos. O resultado foi a publicação, um ano depois e em parceria com Jeff Perren, de um conjunto de regras para combates medievais, intitulado Chainmail. Como bónus, e porque correspondia aos seus interesses literários, Gygax incluiu no jogo um «suplemento de fantasia» onde descreve regras opcionais para heróis, feiticeiros, gigantes e espadas mágicas. Uma parte não-negligenciável do seu público-alvo rejeitou explicitamente a variante, considerando-a demasiado pueril e folclórica. Para outros, foi uma epifania.

UMA FILOSOFAL PEDRA CASTANHA

David Lance Arneson (1947-2009), um jovem estudante de História na Universidade do Minnesota, fazia parte do principal clube de jogos de estratégia da região de Minneapolis-Saint Paul. No Inverno de 1967, David Wesely (1945-) convidou Arneson e os restantes membros do grupo para uma sessão de um jogo diferente de qualquer outro, que recentemente inventara. Depois de descrever o cenário da acção – a aldeia ficcional de Braunstein, durante as guerras napoleónicas –, Wesely entregou a cada jogador o controlo de uma única personagem, com objectivos e características próprias. Para surpresa dos participantes, habituados a comandar batalhões, regimentos e exércitos, algumas personagens nem sequer tinham funções militares, como o chanceler dos estudantes ou o banqueiro. As regras formais eram quase inexistentes, pelo que os jogadores deviam negociar e discutir uns com os outros para atingir os seus objectivos, mediante a adjudicação de Wesely, o juiz.

Em pouco tempo, os Braunsteins despertaram tal interesse junto da comunidade, que Dave Arneson passou também a assumir funções de organizador e juiz. Nos anos que se seguiram, foram encenadas diversas variantes do jogo, como Piedras Morenas (república das bananas latino-americana) ou Brownstone (aldeia texana).

Com o passar do tempo, Arneson começou a sentir a falta de um sistema de regras mais estruturado para os seus jogos, pelo que, em 1971, decidiu utilizar o recém-publicado Chainmail como base do seu Braunstein mais recente, com temática medieval-fantástica, a que chamou Blackmoor. Para colmatar outra falha das versões anteriores, Arneson introduziu ainda o conceito inovador de campanha; as personagens eram transferidas de sessão para sessão juntamente com as respectivas experiências e posses. Com Blackmoor, estava inventado o antecessor directo de D&D.

O CAOS E A LEI

Arneson conhecera Gary Gygax em 1969, quando viajou até Lake Geneva para participar na segunda edição da Gen Con. A proximidade de interesses motivara, desde então, um contacto relativamente próximo entre ambos, que chegou a levar à co-autoria de um jogo naval, Don’t Give Up the Ship, em 1972.

Pouco depois, no final do mesmo ano, Arneson mostrou Blackmoor a Gygax, que, de imediato, entendeu que tinha nas mãos um diamante em bruto. Dando largas ao espírito sistemático, pediu a Arneson que lhe enviasse todas as suas notas e revisões, e lançou-se a desenhar um novo sistema de regras que ordenasse e aproveitasse toda a originalidade caótica do jovem parceiro. Para isso, criou o seu próprio mundo ficcional e a respectiva campanha, Greyhawk, e recrutou alguns companheiros de jogo e os filhos, Ernie e Elise, como cobaias para as aventuras que começou a escrever.

O bulício criativo, alimentado pelo diálogo entre Gygax e Arneson, depressa contagiou os grupos locais de jogadores; a originalidade e o potencial deste novo jogo não deixavam ninguém indiferente. Neste período, cada sessão estava repleta de mistério e descoberta, já que os jogadores raramente adivinhavam o que iria acontecer, em parte pela constante introdução e modificação de regras.

Finalmente, Gygax terminou a primeira versão completa das regras e o título provisório, Fantasy Game, foi mudado por sugestão familiar, para um mais estimulante Dungeons & Dragons. No início de 1974, os mil exemplares da primeira edição da caixa castanha chegaram ao mercado com a chancela da editora fundada para o propósito, a Tactical Studies Rules, ou TSR. No contexto da época, sobretudo tendo em conta que se tratava de uma iniciativa mais ou menos amadora (os três livros contidos na caixa foram dobrados e agrafados à mão pelos editores e famílias), a impressão de uma tiragem desta dimensão era inaudita, obrigando Gygax a recorrer a investidores externos.

AS MASMORRAS E OS DRAGÕES ASSINALADOS

A história inicial dos jogos de personagem em Portugal, não é feita de rasgos criativos, mas de divulgação tímida. De facto, a segunda metade da década de 70, pelo momento histórico particular e agitado, dificilmente constituiria o terreno ideal para a recepção sustentada deste tipo de jogos e ainda menos para o desenvolvimento de uma comunidade conexa.

Não obstante, à semelhança do que acontecera anos antes nos EUA, mas a uma escala muitíssimo mais reduzida, era então possível encontrar por cá grupos de entusiastas de jogos de guerra, tanto na vertente de miniaturas como de tabuleiro, organizados em torno de lojas de modelismo e um ou outro coleccionador mais activo. Em 1975, por exemplo, os n.os 4-5 do importante fanzine suíço Europa, dedicado a jogos de estratégia, conta com um português entre uma centena de assinantes, o que, por pouco que pareça, não deixa de ser significativo.

Um dos resultados mais visíveis desta presença discreta foi a publicação comercial do primeiro jogo de guerra português, A Guerra dos Planetas, em 1981, da autoria de Sebastião Alves. A ambientação de ficção científica, compreensível à luz da proximidade da estreia de A Guerra das Estrelas, deixa antever uma abertura a temáticas não-históricas e especulativas, que constituem requisito sine qua non do imaginário rolístico, mas que nem sempre se coadunam com a seriedade dos wargamers.

É possível que tenha havido algumas experiências isoladas anteriores, mas a primeira vaga consistente de jogadores de RPG em Portugal data do início dos anos 80. Com base nos relatos e nas memórias de alguns dos intervenientes, encontramos dois elementos recorrentes: um amigo, um familiar ou uma estada no estrangeiro que dão a conhecer os jogos de forma fortuita ao «jogador zero»; e, a partir daí, uma difusão feita quase exclusivamente por passa-palavra. Não havia no país editoras, lojas ou qualquer outro meio formal de conhecer e praticar o hobby, excepção pontual feita aos ecos que chegam de fora, por exemplo na revista francesa Jeux et Stratégie, que contava com alguns leitores portugueses.

Ainda assim, as poucas sementes germinaram lentamente durante os anos seguintes, nutridas, muitas vezes, por iniciativas individuais que se dirigiam a periódicos especializados e vendedores estrangeiros, provenientes em parte do seio da pequena comunidade de jogadores de miniaturas e de estratégia que, sem o saberem, partilhavam intimamente os antepassados com os jogos de personagem.

Em 1985, todavia, três acontecimentos assinalaram o início de uma nova fase. Em primeiro lugar, foi fundado o primeiro clube de RPG português, a Torre do Necromante, na Academia Recreativa de Santo Amaro, do bairro lisboeta de Alcântara. O colectivo, que esteve em funcionamento até ao final da década, reunia semanalmente algumas poucas dezenas de jogadores, e chegou a publicar três números de um fanzine, Bola de Cristal. Curiosamente, o jogo assumidamente preferido e mais jogado na Torre não era o D&D, mas sim o mais complexo e menos conhecido Runequest.

O segundo, foi o início da publicação de uma coluna semanal, dedicada à divulgação dos jogos de personagem, no jornal Diário Popular (entre 9 de Novembro de 1985 e 22 de Fevereiro de 1986). Para além da preocupação pedagógica dos autores, que tinham a seu cargo, ao fim e ao cabo, explicar aos leitores um tipo de jogo inteiramente desconhecido, os artigos são ainda notáveis por conterem um sistema original de regras, intitulado Os Druidas do Eclipse, que apresentam de forma modular e progressiva como introdução aos RPG. Pesem embora as regras sinuosas, vistas com o benefício de mais de trinta anos, muitos jovens jogadores encontraram ali o ponto de entrada no hobby.

No mesmo ano, foi ainda publicada pela Editorial Verbo a primeira edição de O Feiticeiro da Montanha de Fogo, o volume inaugural da colecção Aventuras Fantásticas, criada pelos britânicos Steve Jackson e Ian Livingstone, como um híbrido entre os jogos de personagem e a literatura fantástica tradicional. Apesar de a experiência solitária ser muito diferente da de um RPG, a sobreposição de imaginários fez dos livros verdes, desde então, um dos principais chamarizes para os jogos de mesa com temática fantástica.

O crescimento da presença dos jogos de personagem em Portugal teve o seu momento de consolidação com a publicação, no final de 1989, das Regras de Base de D&D, a famosa caixa vermelha Mentzer. A iniciativa, da responsabilidade do tradutor e editor José Hartvig de Freitas, assinalou a passagem de um registo exclusivamente amador para o mundo das licenças oficiais do maior RPG mundial. Apesar de o seu sucesso comercial não ter correspondido às expectativas iniciais, em parte devido a desaguisados com a editora SocTip, o aumento substancial de exposição permitiu a uma nova geração de jogadores tomar contacto com jogos de personagem. A título de ilustração, considere-se que a sua distribuição esteve, a dado momento, a cargo da editora Europa-América, que disponibilizou o jogo em livrarias de todo o país. Infelizmente, não chegou a bom porto o plano de publicar uma extensa colecção de suplementos e módulos, assim como de criar uma rede nacional de clubes de jogo, tendo sido apenas dada à estampa a aventura introdutória Colina do Terror (1989).

Nos anos seguintes proliferaram os clubes e os grupos de jogo, sobretudo na área da grande Lisboa, de entre os quais se destaca o Clube de Jogos de Simulação (CJS), ao Saldanha, que juntava veteranos dos jogos de guerra e jogadores de RPG, por regra mais jovens. Este colectivo, que provavelmente terá sido o maior clube português dedicado a jogos de personagem e de estratégia, chegou a contar com um núcleo em Cascais, e foi responsável por diversos torneios e acções de divulgação.

No mesmo período, houve uma última tentativa de dinamizar o panorama editorial português pela mão da editora Imperium Jogos, que começou a tradução de Traveller e perspectivou a edição nacional de Vampire: The Masquerade; para desaire dos fãs dos jogos de personagem, ficou-se pela publicação de dois jogos de tabuleiro de ficção científica, Battletech e o homónimo Imperium, antes de fechar as portas.

O encerrar desta segunda etapa consumou-se com o terramoto que teve tanto de inesperado como de avassalador e que virou do avesso o universo dos jogos analógicos em meados dos anos 90: o aparecimento triunfal de Magic: The Gathering. Em Portugal, como no resto do mundo, a voragem dos jogos de cartas coleccionáveis transformou irreversivelmente o panorama dos RPG.

ESSA, NO ENTANTO, É OUTRA HISTÓRIA.

*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico. Artigo retirado da revista BANG! n.º 22, publicada em julho de 2017.

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O Fantástico Mundo de Tim Burton: Nunca Confiem nos Vivos

Tim Burton - Bangcast

Há quem fale em comédia de horror ou horror de fantasia para descrever a semântica ficcional de Tim Burton, mas do que realmente falam Edward Scissorhands, Beetlejuice, Jack Skellington e Willy Wonka? Entre caixões e cemitérios, os seres imaginários parecem falar da vida, falando da morte. É o mundo intenso dos inadaptados. Aqueles que não se encaixam nas convenções sociais e nos espartilhos padronizados da normalidade. E isto não é ficção.

É um gesto desenhado com o toque suave do amor: o criador (Vincent Price) prepara-se para completar a sua obra biomecânica e colocar-lhe (por fim) as mãos, mas deixa-se surpreender por um ataque e desfalece aos pés da criatura. O incompleto Edward (Johnny Depp) não entende o que se passa naquele seu monólogo interior (porque não pode ter emoções). Inclina-se sobre o corpo inanimado e desliza os dedos sobre o rosto (provavelmente ainda quente). Este gesto do último adeus transformar-se-á em mutilação.

A narrativa começa então a deslocar-se criticamente para uma sociedade que se julga perfeita (cínica e hipócrita como todas as perfeições humanas) para que Tim Burton possa, simplesmente, contar a história de um jovem inadaptado através do seu trauma inicial (a morte e a solidão). Este fantasma do passado ressurgirá tantas vezes quantas ele for rejeitado pelos outros porque Edward Scissorhands é apenas um jovem incapaz de expressar os seus sentimentos.

Não se adapta à sociedade onde se vê abandonado e demora a reconstruir o seu mundo emocional. É um exílio interior numa sociedade que força os diferentes a mutilarem a sua natureza para serem aceites.

Se for verdade que existe demasiada realidade na vida de Edward Scissorhands, a «narrativização» do mundo de Beetlejuice (Beetlejuice, 1988) consegue projectá-la para o outro lado: «Nunca confiem nos vivos.» Não importa que Beetlejuice (Michael Keaton) esteja morto. O que importa é a história da sua inadaptação mesmo depois de morto.

O EXORCISTA DOS VIVOS

Ele pode ser sarcástico e ofensivo no mundo dos mortos porque Tim Burton está a subverter a própria morte, desde logo, quando apresenta Beetlejuice como «o maior exorcista dos vivos». Há demasiada vida na morte, sim. O problema de Beetlejuice não é propriamente estar morto, mas ser incomodado por pessoas vivas enquanto está morto.

É uma reiterada desconstrução das regras da morte que começa quando os protagonistas são mortos, logo no início do filme, e de uma forma, digamos, divertida. Adam (Alec Baldwin) e Barbara (Geena Davis) sabem que estão mortos e têm de refugiar-se no sótão (como se estivessem no purgatório) até conseguirem assombrar os vivos (que agora vivem na sua casa). É uma casa mal-assombrada porque os mortos não conseguem assombrá-la bem: «Troubled by the living? Is death a problem and not the solution? Unhappy with eternity? Having difficulty adjusting? Call Betelgeuse.»

Não é apenas a morte que é divertida: o estarem mortos também, porque conseguem reinventar-se como fantasmas enquanto assombram um casal irritante e a sua filha adolescente depressiva e solitária (Winona Ryder). Não é por acaso que esta jovem inadaptada é a primeira a compreender que vive numa casa assombrada. Não só não teme os fantasmas, como se desloca da realidade gasta da sua família disfuncional para a estimulante mundo da morte.

É aí que Betelgeuse se comporta com o mais vivo de todos os mortos. É um solitário incapaz de se adaptar à própria morte e exagera tanto na lascividade como nos arrotos (principalmente quando coça a virilha em simultâneo). Manipula agressivamente as relações com os outros e comporta-se como se os limites se aplicassem apenas à sociedade que o marginalizou. Betelgeuse pode ser um louco incompreendido, mas é o único que vive a morte até aos seus limites.

AS EMOÇÕES DOS SEM CORAÇÃO

Estas personagens inadaptadas são produto de um jogo satírico que apela à insurreição normativa, e também por isso, The Nightmare Before Christmas (1993) parece (enganadoramente) um conto infantil clássico (na fronteira entre o Natal doce e o assustador Halloween). Uma narrativa de conto fantástico musicado, mas (sendo tudo isso) talvez o sentimento de uma certa angústia seja a característica mais impressiva.

Não é coisa pouca, isso de viver na morte: também Jack Skellington (Danny Elfman/Chris Sarandon) vive tão morto quanto Betelgeuse.Tim Burton começa a fazer desfilar esqueletos e espantalhos, bonecas de trapos e bichos papões (quem nunca sonhou com o Oogie Boogie?), corcundas e bruxas, caras costuradas e figuras geometricamente erráticas (toda uma enciclopédia-pesadelo infantil num único bestiário gótico). Podia ser um clássico filme de horror, mas esta animação stop motion é (mais) uma versão do seu fantástico mundo (um desafio à zoologia fantástica de Jorge Luís Borges). Há quem sinta uma atmosfera sombria nestas monstruosidades, mas se isto puder ser escrito assim, talvez sim, talvez sejam monstros, mas são monstros emocionais e incompreendidos. É um horror suave que (em boa verdade) dispensa mediação narrativa.Jack Skellington tem como missão celebrar os mortos nas festas de Halloween da sua cidade, mas é o enigmático Natal que o deixa fascinado. Veste-se de Pai Natal para distribuir (horríveis) presentes no seu caixão-trenó e assume o espírito da época que mais ninguém à sua volta compreende (a desgraçada sociedade padronizada). É um esqueleto horrível (e sem coração) que se emociona com o mundo das crianças e emociona-se sem que vejamos os seus músculos e as suas expressões (porque é uma caveira sem olhos). É preciso olhar mais para dentro para ver Jack Skellington e é isso que impressiona: a emoção de uma personagem sem vida (esse esqueleto sem coração com a sua caveira sem olhos).

A MORTE NÃO É ASSIM TÃO MÁ

O final não é feliz (porque a vida nunca acaba bem), mas Tim Burton lá deixa Jack Skellington beijar a boneca de trapos Sally (Catherine O’Hara), tal como Edward Scissorhands também ela artificialmente nascida. O enquadramento da Lua e a banda sonora completam o quadro narrativo de uma história em que só falta morrerem para sempre. Teriam sido felizes. Adivinha-se uma linha de continuidade quando Victor Van Dort (Johnny Depp) encontra Victoria Everglot (Emily Watson) para assim reencontrar o derradeiro amor com a sua noiva viva (Corpse Bride, 2005).

Victor e Victoria começam por ficar presos num noivado forçado. São as grilhetas das convenções impostas pelos pais (embora depois acabem por se apaixonar ao som do piano) como produtos artificiais de sociedade vitoriana profundamente normativa e marcada pelas posições sociais. Victor Van Dort não consegue responder a todas essas exigências e os seus fracassos são (devidamente) anunciados por um pregoeiro para expor as suas vulnerabilidades.

Quando procura um porto de abrigo, Tim Burton leva-nos (novamente) para um cemitério para que Victor Van Dort possa entrar no mundo certo: a Terra dos Mortos. Na Terra dos Vivos, as personagens estão mortas por dentro, como zumbis seguindo códigos sociais, mas na Terra dos Mortos, os habitantes estão realmente vivos porque desfiam as fronteiras da aceitação. Há por aqui uma consciência. A larva que vive na caveira da noiva morta (Helena Bonham Carter) intervém como a voz interior de Emily e invoca a voz que todos temos dentro de nós: poderá um coração despedaçar-se mesmo depois de parar de bater?

O CHOCOLATE NÃO TEM DE FAZER SENTIDO

A morte não é assim um lugar tão obscuro, ou (pelo menos) não mais obscuro que algumas sociedades nesta história de amor e de sacrifício (anda por ali um cocheiro doente que se sente «esplêndido» depois de morrer). Tim Burton deposita este imenso peso emocional nos ombros frágeis de Charlie Bucket (Freddie Highmore), uma criança amorosa e obediente, e da sua família igualmente calorosa e carinhosa: «I wouldn’t give up my family for anything, not for all the chocolate in the world.» Tudo em fortíssimo antagonismo com as outras crianças (uns verdadeiros trastes) desta história açucarada (Charlie and the Chocolate Factory, 2005).

É com a pureza de Charlie que nos ligamos e com ele sofremos a miséria material da sua família (aconchegada numa casa saída dos Três Ursinhos). Toda esta magia dos contos infantis fortifica-se com a fantástica e surreal Fábrica de Chocolate que (pairando sobre toda a cidade/sociedade) esconde uma outra narrativa. A doçura produzida pela infalível tecnociência que produz as melhores guloseimas do mundo irá desaparecer, revelando assim a escuridão escondida desde o início da narrativa.

Willy Wonka (Johnny Depp) é o mestre dessa cerimónia sinistra de revelação.

As crianças ranhosas (ranhosas como os seus pais) vão sendo por ele punidas: Augustus Gloop é aspirado por um tubo de chocolate devido à sua ganância; o excesso de confiança e irritante hiper-competitividade de Violet Beauregarde transforma-a num mirtilo; a arrogância e egoísmo mimado de Veruca Salt fazem com que seja sugada pelo o subsolo por roubar nozes aos esquilos; e o insolente e agressivo Mike Teavee vê-se encolhido por um teletransportador, pagando o preço do seu vício por excesso de televisão.

Cada criança castigada tem direito à sua própria canção de despedida como uma sentença musicada das suas deficiências de carácter (e dos pais).

É o criador da fantástica Fábrica de Chocolate que se revela o seu carrasco (moral). Willy Wonka é desconfiado (acha que lhe querem roubar as receitas secretas) e vive atormentado pela rejeição do pai (Christopher Lee) desde que lhe revelou o sonho de produzir chocolate. O que sabemos através de um flashback visual induzido por um comentário de Charlie Bucket: «O chocolate não tem de fazer sentido, por isso é chocolate.» Reencontrará o pai mais tarde, mas sem que este o reconheça.  Um dentista que havia contrariado o seu sonho de ser chocolateiro devido aos danos provocados nos dentes pelo excesso de açúcar: «Vejamos qual é a dimensão dos estragos.» Os estragos são emocionais, depois da longa separação.

Se a rejeição for uma outra forma melancólica de morte, a separação (o abandono) parece invocar a morte do pai amado de Edward ScissorhandsBasta ver que, quando conhece os visitantes da sua fábrica, Willy Wonka revela-se incapaz de pronunciar a palavras «pais», e volta a (não) fazê-lo quando conhece os pais de Charlie.

 A Fábrica de Chocolate é o mundo interior de Willy Wonka e acaba por se transformar numa projecção de sua mente (nunca se sabe o que está por detrás de cada porta). É a angústia do relacionamento com pai que origina todos aqueles lugares estranhos e que se manifesta quando (este adulto encarcerado na mente de uma criança) é também rejeitado por Charlie Bucket: «I wouldn’t give up my family for anything, not for all the chocolate in the world.»

Quando Tim Burton desliza os dedos sobre o rosto do pai, o gesto do último adeus acaba por se transformar em mutilação devido às lâminas afiadas em forma de dedos. As mãos artificiais ficaram por colocar devido à morte súbita do pai e essa mutilação permanecerá para sempre.

DELICIOSAMENTE MACABRO

É um desfile de autores académicos e de teorias científicas sobre universos imaginados. The Philosophy of Tim Burton (Jennifer L. McMahon, edi., University Press of Kentucky, 2014) propõe um conjunto de diferentes interpretações sobre a «assinatura macabra» de Tim Burton. Chamam-lhe «deliciosa assinatura macabra» pelo fascínio que provoca nas audiências, mesmo tratando-se de mundos ficcionais sinistros. Procuram significados através do estudo filosófico da arte e oferecem mais perguntas do que respostas. Fizeram bem.

A TERAPIA DOS FILMES

Fica sempre muito por dizer sobre as personagens e os filmes dirigidos e produzidos por Tim Burton. É impossível abarcar esta galáxia criativa, mas talvez a obra de Ian Nathan (Tim Burton: The iconic filmmaker and his work, 2016) constitua uma belíssima ferramenta de interpretação. Desde logo, porque começa por colocar o autor dentro das dinâmicas da história do cinema de horror para assim demonstrar as suas singularidades. É um relato da sua ascensão das trevas (para onde sempre regressa).

*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Uma versão reduzida deste artigo pode ser encontrada na revista BANG! n.º 33, publicada em maio de 2023.

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Despojadxs… de Liberdade?

O que há de errado em mudar as coisas?

Em 1984, The Lathe of Heaven (O Tormento dos Céus) foi alvo de uma audiência pública numa cidade perto de Portland. Em causa estava a adequação do romance ao ensino secundário. O caso para que fosse excluído do plano de leitura foi defendido por um homem não identificado por Ursula K. Le Guin, enquanto a defesa esteve a cargo do Departamento de Inglês da escola. Le Guin, sentindo-se bem representada, não interveio na sessão, mas fez um relato para um jornal local. Os argumentos apontados para a exclusão do romance aparentavam esconder o objetivo principal que, segundo pareceu à autora, era censurar um livro que retratava uma relação entre uma mulher negra e um homem branco. Fosse racismo a razão real ou não, o certo é que o livro causou desconforto. Ora, Joyce Carol Oates declarou algures que a função da arte não é dar conforto, mas sim provocar, perturbar, incitar emoções e expandir horizontes que não prevemos e que podemos até nem desejar alcançar.  Não é esse, pois, o objetivo da literatura fantástica, da ficção científica, que, livres de convenções, provocam, alteram, desmontam, invertem, subvertem, libertam?

A Viagem: Portland, Oregon, Terra, 2002

Em 1980, Asimov ousou denunciar «o culto da ignorância» latente na sociedade americana que era, e é, corroída por uma insistente veia anticiência e anticultura. Essa veia palpita sempre que um livro é censurado, porque, livro a livro, morre o pensamento crítico, a imaginação, o sonho e a liberdade. Na era do anti-intelectualismo, das notícias falsas e dos «factos alternativos», em que reinam oxímoros como este, viajemos para a futurística Portland de The Lathe of Heaven, na qual Le Guin recorreu à argamassa das utopias para construir uma distopia: o sonho.

The Lathe of Heaven conta a história de George Orr, um jovem que recorre às drogas para evitar dormir, porque os seus pesadelos têm tendência a tornar-se realidade. Como toxicodependente, é submetido ao cuidado do psiquiatra William Haber, que, apercebendo-se dos poderes de Orr, inicia experiências com o objetivo de resolver problemas societais como o racismo e a sobrepopulação. Contudo, de boas intenções… estão as distopias cheias…

As Vozes: William Haber & George Orr

Fugindo às dicotomias simplistas, Le Guin subverte hierarquias: aquele que tem poder e capacidade para salvar o mundo não só não o quer fazer, como fica refém daquele que, aparentemente, quer ser o herói. Este, por sua vez, só recorrendo à manipulação e ao controlo da mente do primeiro consegue poder e influência by proxy. Entre opressor e oprimido, sonho e pesadelo, permanece a questão: As intenções justificam os meios? Será Haber, de facto, um vilão? O médico instrumentalizou o paciente, manipulou e beneficiou da assimetria hierárquica, mas não foi por uma boa razão? Fossemos Haber, seríamos capazes de resistir à tentação, à hubris dos heróis? O que estaríamos dispostxs a fazer ao abrigo de uma «boa causa»? Talvez censurar livros e limitar liberdades?

Le Guin semeava a dúvida nas suas histórias. Não é, pois, curioso que um livro que explora os perigos do controlo da mente tenha sido alvo de sabotagem?

«A censura é absolutamente antidemocrática e elitista, pois o censor diz: “Tu não sabes o suficiente para escolher, mas eu sei. Por isso lerás apenas aquilo que eu autorizo e nada mais”», escreveu Le Guin. Já a democracia afirma que ser livre é aprender a escolher. Portanto, porque não ler mais ficção científica e escolher lutar para que não sejamos jamais Despojadxs de Liberdade?

Em retaliação à censura de The Handmaid’s Tale, Margaret Atwood anuncia o leilão de uma cópia do livro que é impossível incinerar.


«Os livros que o mundo considera imorais são os livros que espelham ao mundo a sua própria vergonha.» Oscar Wilde 

«Existe um culto da ignorância nos Estados Unidos, e sempre existiu. A corrente do anti-intelectualismo é uma ameaça constante, serpenteando pela nossa vida política e cultural, alimentada pela falsa noção de que democracia significa “a minha ignorância vale tanto quanto o teu conhecimento”.» Isaac Asimov

«Uma pessoa que acredita, como ela, que as coisas se encaixam, que há um todo do qual se é uma parte, e que, ao se ser parte, se está inteiro; essa pessoa não tem qualquer desejo de fazer-se Deus. Só quem nega o próprio ser anseia fazer-se Deus.» (Le Guin, in The Lathe of Heaven)

«Que pessoa sã poderia viver neste mundo louco e não ser também ela louca?» (Le Guin, in The Lathe of Heaven)


Argumentos pela exclusão de The Lathe of Heaven do plano de leitura, conforme apresentado em audiência pública e descrito por Le Guin:

  1. Ideias confusas e estrutura sintática pobre.
  2. Uma referência a homossexualidade.
  3. Uma personagem que transporta consigo um frasco de brandy na bolsa e alude à falta de amor e à negligência da mãe.
  4. A alegada defesa da autora de religiões não-cristãs (Le Guin confessa-se confusa em relação a este ponto).
  5. Comparação entre o romance e comida de plástico, supostamente porque se trata de ficção científica.

(«Whose Lathe?», in Dancing at the Edge of the World: Thoughts on Words, Women, Places, 1989, 123-126)

Publicado em 1971, The Lathe of Heaven surgiu como uma homenagem a Philip K. Dick e incorpora muitas das características da distopia clássica: cenário apocalíptico, caos social, controlo da população através de fármacos, desespero, entre outros aspetos…

«O que há de errado em mudar as coisas? Pergunto-me se essa sua personalidade centrada na autoanulação o leva a olhar as coisas de forma defensiva. Quero que tente deslocar-se de si mesmo e tente observar o seu próprio ponto de vista de fora, objetivamente. O George tem medo de perder o equilíbrio. Mas a mudança não precisa de desequilibrá-lo; afinal, a vida não é um objeto estático. É um processo. Não há como permanecer parado. Racionalmente, o George sabe isso, mas emocionalmente recusa-se a aceitá-lo. Nada permanece igual entre um instante e o seguinte, não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. A vida… a evolução… o universo inteiro do espaço/tempo, matéria/energia… a própria existência é, na sua essência, mudança.» (Le Guin, in The Lathe of Heaven)

Amostra de livros banidos em algumas escolas nos Estados Unidos em 2022:

The Complete Maus de Art Spiegelman

All Boys Aren’t Blue de George M. Johnson

The Bluest Eye de Toni Morrison

Monday’s Not Coming de Tiffany D. Jackson

The Hunger Games Trilogy de Suzanne Collins

The Handmaid’s Tale de Margaret Atwood

Snow, Glass, Apples de Neil Gaiman

His Dark Materials de Philip Pullman

A Wrinkle in Time de Madeleine L’Engle

Carrie de Stephen King

Próximo Destino: Anarres

Próximo Emissário: Shevek

Os Despojados

A jornada de um homem em busca da reconciliação de dois mundos

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Uma versão reduzida deste artigo pode ser encontrado na revista BANG! n.º 33, publicada em maio de 2023.

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BANGCAST#19 – Uma Conversa com Joe Abercrombie, autor de “A Vingança Serve-se Fria”

Joe Abercrombie

Mais do que uma entrevista, uma conversa descontraída com o simpatiquíssimo autor de “A Vingança Serve-se Fria”.

Depois de duas tentativas, ambas canceladas devido à pandemia que vimos vivendo nos últimos dois anos, decidimos trazer Joe Abercrombie ao BANGCAST.

Joe Abercrombie não é um convidado qualquer, na verdade é um daqueles que sempre soubemos que não podia faltar MESMO na coleção BANG!  E não falta. Com a edição do “A Vingança Serve-se Fria” faz desde 2020 parte desta grande coleção.

O autor conta já com um extensa lista de publicações, tudo dentro da fantasia, com variados estilos, que vão desde grandes, pesadas e obscuras histórias, até fantasia mais juvenil. Por cá, e por razões já previamente explicadas por diversas vezes pela editora, temos muita vontade de editar mais do autor, um desejo já diversas vezes adiado.

Entretanto, enquanto não podemos ter o autor connosco fisicamente, trazemos um pouco do que ele nos pode oferecer através de uma entrevista para a Revista Bang! º 28 (2020) e o mais recente ep, o  #19 do BANGCAST, que conta com os nossos convidados habituais: Luís Filipe Silva, Bruno Martins Soares e o nosso anfitrião, o editor Luís Corte Real para conduzir esta conversa cheia de temas interessantes para todo e qualquer leitor.

Para assistires a este episódio (assim como os anteriores) basta clicares aqui e escolheres a tua plataforma habitual:

https://bangcast.buzzsprout.com/

Entrevista para a Revista BANG nº 28, Março 2020

“A vingança Serve-se Fria” é um livro que já publicaste há onze anos…sentes que já é um livro antigo?

É interessante para um autor que já anda por aqui há algum tempo – os livros novos são publicados em diferentes línguas em momentos distintos e os livros antigos têm uma vida duradoura. Surgem constantemente novas edições, e é por isso que há novos leitores a conhecer livros mais antigos. Há pouco tempo reli todos os livros da série First Law quando estava a rever o meu livro mais recente, A Little Hatred. Nesse sentido, não sinto este livro como “antigo”, mais como uma parte de um assunto
permanente.

 

Como incentivarias os leitores portugueses de fantasia a ler “A vingança Serve-se Fria”?

É uma história negra, tóxica, sangrenta e ocasionalmente divertida de vingança.

“A vingança Serve-se Fria”é um livro impiedoso. Mais ainda do que Glen Cook ou George Martin, porque é que és tão impiedoso?

Bem, dizem que deves escrever sobre aquilo que conheces… Sempre gostei de coisas que são obscuras e sombrias, sejam westerns, thrillers ou fantasia. Quando leio, quero temer pelos personagens, quero vê‑los enfrentar situações tenebrosas e perigosas, por isso tento escrever da mesma forma.

Não há muitos escritores de fantasia a passar de trilogias para romances standalone, porque é que o fizeste? ( e estou feliz por o teres feito)?

Isto pode parecer estranho vindo de alguém que escreve livros bastante grandes de acordo com a maioria dos padrões, mas fiquei um pouco frustrado pelo tamanho de muita da fantasia – séries cada vez maiores de livros cada vez maiores. Quando
terminei a minha enorme trilogia, quis tentar escrever histórias mais direcionadas, que se passassem no mesmo mundo e incluíssem algumas das mesmas personagens, mas fossem mais focadas, talvez com enredos mais cinematográficos. Queria que os leitores pudessem escolher e experimentassem um único livro em vez de terem de estar sempre à procura do primeiro livro de uma série.

Ser escritor profissional de fantasia é tão divertido como pensavas quando eras apenas um aspirante?

É uma pergunta interessante – em muitos sentido é uma ótima profissão. É criativa, tens um total controlo sobre o que fazes e como, e recolhes todos os benefícios do sucesso que alcanças. Mas a maior parte das vezes também pode ser muito solitária, daí ser fundamental a colaboração com os editores e os encontros com os leitores, sempre que possível. E há desafios – depois de finalmente teres terminado aquela incrível trilogia de fantasia que sempresonhaste escrever, tens de continuar a escrever a longo prazo e ter uma verdadeira carreira.

És muito nerd? ( comics, d&d, jogos de tabuçeiro, Witcher3)

Bem, ganho a vida a escrever sobre espadas mágicas e feiticeiros, por isso, imagino que estou perto do topo da escala. Também jogo muitos videojogos, e sempre o fiz. Quando era criança, também joguei muito roleplaying games, mas agora já não tenho tempo para o fazer.

Em relação a ficção Científica ( literatura e filmes/tv)

Gosto de ficção científica, mais de filmes e televisão do que da escrita, mas nunca ocupou no meu coração o mesmo lugar da fantasia. Nunca me imaginei a escrever ficção científica.

A SDE publica George Martin , Brandon Sanderson, Robin Hoob, Steven Erikson, Glen Cook, Michael Moorcock, Fritz Leiber, Robert E. Howard. Consegues listá-los por ordem de preferência?

Ah! Nunca me imaginei a fazer uma coisa dessas. Podes ficar chocado por saber que na verdade não li todos esses autores. Mas deixa‑me escolher aqueles que foram grandes influências para mim. George R.R. Martin, claro, abriu‑me realmente os olhos quando li A Guerra dos Tronos, na década de 90. Naquela época, tinha‑me de certa forma desapaixonado pela fantasia – parecia‑me ultrapassadae previsível –, e ele mostrou‑me que se podia fazer algo sombrio, chocante, imprevisível e direcionado para as personagens mantendo o foco na fantasia épica. Depois, Fritz Leibner é também um escritor que admiro, talvez um pouco ignorado nos nossos dias, mas as suas histórias têm um charme fanfarrão e são frequentemente muito divertidas, que é
uma coisa que não temos suficientemente na fantasia.

 Já alguém te disse que os teus títulos são incríveis?

Digo a mim mesmo o mesmo todas as manhãs… BANG!