
por Safaa Dib
Primeiro conquistou os tops americanos de literatura fantástica. Depois, os tops de literatura generalista. A seguir, conquistou tops um pouco por todo o mundo, incluindo os portugueses. Por fim, chegou à televisão. E voltou a conquistar toda a gente. É um dos maiores fenómenos literários dos últimos anos, e nós vamos tentar perceber porquê…
Nunca houve tanta curiosidade pelo mundo da edição como agora. Talvez devido à massificação da Internet e com tudo o que isso implicou – a blogosfera, os fóruns, as redes sociais, os sites – os leitores nunca tiveram a possibilidade de contactar tão directamente as editoras como agora. E deste processo tem nascido uma curiosidade natural pela forma como se realiza a edição em Portugal. Como todos os negócios, tem os seus segredos que é preferível não revelar, mas, de vez em quando, abrimos uma janela para o trabalho diário que fazemos, de modo a revelar alguns dos detalhes em torno da construção do nosso catálogo. A construção de um catálogo. Essas são as palavras mágicas que fascinam tanto qualquer editor com vocação para esse trabalho. Tem os seus espinhos e cada editor tem o seu próprio muro das lamentações por todos os fracassos e prejuízos.
George R. R. Martin: O fenómeno de vendas
No entanto, no meio de um negócio cada vez mais competitivo, poder publicar um autor que gostamos é capaz de ser uma das maiores satisfações. E ter sucesso com um autor que gostamos e publicamos é a cereja em cima do bolo.
Foi o que aconteceu com George R. R. Martin, o autor das Crónicas de Gelo e Fogo, cujo sucesso actual ajudou a garantir algum bem-estar à colecção BANG!. Hoje, fala-se em «fenómeno George R. R. Martin», um sucesso à escala mundial, que conquistou leitores e livreiros. As encomendas de livros não param, e acreditamos que ainda estão longe de se esgotar. Dois factores combinaram-se para garantir este extraordinário ano a Martin: a estreia da série A Guerra dos Tronos, uma adaptação da HBO, que triunfou nas audiências, e a publicação do muito aguardado 5.º (mas não último) volume das Crónicas de Gelo e Fogo, A Dance with Dragons (A Dança dos Dragões e Os Reinos do Caos).
Se George R. R. Martin já era um nome consagrado nos reinos da literatura fantástica, explodiu para lá dos seus limites e, à semelhança da sua personagem Daenerys, conquistou leitores e espectadores uns atrás dos outros. Mas voltemos um pouco atrás no tempo para vos mostrar como tudo começou em Portugal, de modo a compreenderem o trabalho que envolveu da parte de todos os colaboradores, os riscos, os anos de espera e a fé que nunca foi perdida.
A história do editor contada pela sua assistente
Muitos sabem que a editora Saída de Emergência surgiu no mercado em 2004, criada por dois irmãos, Luís Corte Real e António Vilaça. Devido a uma conjunção de literatura comercial apelativa e sólida (e a exploração de um nicho muito alternativo, o fantástico), capas dinâmicas e uma boa distribuição, no espaço de um ano, a editora tinha ganho solidez suficiente para os dois irmãos se dedicarem em exclusivo à editora. Muita paixão pelos livros e uma atitude muito mais transparente e próxima ao leitor marcaram a diferença. Não é uma editora conhecida pelos nomes das pessoas que editam, mas pelos autores que publica. Luís Corte Real era já um grande fã de George R. R. Martin, muito antes de ter fundado a editora; uma viagem a Londres e a compra fortuita de Game of Thrones, numa mega-livraria londrina, iniciou a descoberta deste autor, ainda na década de noventa.
Uma vez que parte do catálogo da SdE era dedicado à literatura fantástica (H. P. Lovecraft e Edgar Allan Poe foram os primeiros nomes clássicos a serem publicados), os agentes faziam muitas ofertas de obras deste género ao editor. Em 2005, a agente espanhola de George R. R. Martin começa a realizar as primeiras propostas. Nas palavras do Luís, «ela estava desesperada para vender os direitos dos livros, ninguém queria aquilo». E embora gostasse muito do autor, tinha noção de que o mercado português ainda não era capaz de absorver uma saga daquelas dimensões (cada livro a roçar 800 ou 1000 páginas na edição original), pelo que disse à agente para voltar a contactá-lo daí a um ano.
Marketing, a quanto obrigas
Quando a situação da editora começou a estabilizar em termos financeiros (e o mercado editorial ainda não tinha sofrido metade do que viria a sofrer desde 2008), Luís Corte Real sentiu que era o momento certo para apostar numa saga que até vendia bastante bem nos EUA e alguns países europeus. Não foi uma decisão inteiramente movida por paixão, pois começaram os planos para uma campanha de marketing massiva, em torno do lançamento do 1.º livro. Jorge Candeias foi o tradutor requisitado para a tradução do 1.º título, divido em dois volumes, na edição portuguesa. A divisão em dois volumes tornava os livros muito mais fáceis de manusear, mais baratos e não afugentaria tanto os leitores. Enquanto o tradutor e revisora, Idalina Morgado, discutiam os termos e as opções linguísticas, a editora começou os planos de marketing e surgiu com ideias ambiciosas e inovadoras.
Montras Bertrand foram requisitadas para a promoção do 1.º volume e foram colocados um escudo, uma couraça, um montante e duas armações de veado, objectos que pertenciam ao próprio Luís Corte Real e que os emprestou à Bertrand. Mas a estratégia que prometia dar mais que falar era, sem dúvida, o famoso cupão na badana que podia ser preenchido, recortado, enviado à editora e recebia-se assim a oferta de outro exemplar de A Guerra dos Tronos.
Uma tiragem impressionante para a altura foi impressa e o livro foi lançado nas livrarias em Setembro de 2007. Escusado será dizer que o cupão e as montras causaram sensação. Sem exageros, a editora ofereceu cerca de 2000 livros, no âmbito dessa promoção. Ainda hoje, em 2011, recebemos um ou outro cupão a solicitar a oferta de mais um exemplar.
Muitos leitores portugueses que se renderam pela primeira vez a George R. R. Martin já não se devem lembrar do posfácio escrito pelo editor, posfácio esse bastante revelador dos riscos inerentes a esta publicação:
Portugal é um país pequeno e o mercado da literatura fantástica é marginal. Será possível levar esta série até ao fim? Fará sentido? Depois de muito equacionar, acreditamos que sim. E a prova é que já comprámos os direitos para toda a série e não apenas para o primeiro volume.
O pedido por mais leitores é quase hilariante no último parágrafo:
Obrigado/a por ter lido A Guerra dos Tronos. Fazemos votos para que esteja desejoso/a por ler o segundo volume e que nos ajude a fazer desta série um grande sucesso, convidando familiares, amigos, vizinhos e colegas a lerem-na.
O ritmo de publicação foi essencial para que os leitores se mantivessem fiéis à série. O 2.º volume, A Muralha de Gelo, foi lançado três meses depois, em Novembro de 2007. O terceiro volume, A Fúria dos Reis, em Fevereiro de 2008 e assim sucessivamente. A partir do 4.º volume, deu-se o inesperado: uma entrada fugaz nos tops que começou a provar que a série estava a demonstrar vendas sustentáveis.
Os primeiros frutos
Numa entrevista ao Diário Digital, publicada online em Setembro de 2011, no âmbito do sucesso de George R. R. Martin em Portugal, Luís Corte Real revela que «na altura, apostámos em capas distintas, marketing e promoções fortes, imensa promoção na Internet e as vendas acabaram por ser boas».
As vendas nunca foram más e provaram que uma estratégia bem planeada dá frutos a médio e longo prazo. Felizmente, não conheceu o mesmo destino que uma outra série de fantasia de sucesso internacional, A Roda do Tempo, de Robert Jordan, que acabou por ver a sua publicação cancelada após quatro volumes.
Em poucos meses, As Crónicas de Gelo e Fogo começaram a gerar uma base de fãs, e foi a própria editora que os acolheu a todos e criou-lhes uma casa na Internet, no fórum George R. R. Martin (que, mais tarde, se expandiu para se tornar o fórum BANG!, o fórum oficial da colecção, gerido pela editora). Abriu as portas em 2007 e a iniciativa ajudou a solidificar, ainda mais, a relação entre os leitores e a editora, ajudou a divulgar as novidades e a criar um ambiente entusiástico em torno desta saga.
Nem tudo foi executado na perfeição; a 1.ª edição do 4.º volume tinha uma sinopse com spoilers que revelavam toda a história do livro (foi substituída numa edição posterior); esse 4.º volume foi o que apresentou na lombada o título errado; o 6.º volume foi impresso com o ISBN errado e foi necessário colar autocolantes com novo código de barras na tiragem. Todos os erros foram corrigidos, mas, na altura, foram fruto da pressa.
George R. R. Martin visita Portugal
As minhas próprias memórias começam a infiltrar-se, neste momento da narrativa. O ano de 2008 foi espectacular para a promoção desta saga por um motivo muito particular: o autor planeava uma tour europeia, nesse ano, e iria estar presente no evento da Semana Negra, em Gijón, Espanha. O Rogério Ribeiro e eu, organizadores do Fórum Fantástico, sabendo desse facto, começámos a colocar a hipótese de uma deslocação do autor a Portugal.
Após obter patrocínios e garantir o apoio do Luís Corte Real, fizemos o convite ao autor que prontamente aceitou.
Esse foi o ponto alto desse ano. Martin ainda não era um autor mega-bestseller, nem muito conhecido fora da literatura fantástica, e, embora já tivesse alcançado um bom patamar, ainda era considerado um escritor de nicho. A sua presença durou dez dias em Portugal, no pico de um mês de Julho muito quente. O 5.º volume, A Tormenta de Espadas, iria ter um pré-lançamento na sala do El Corte Inglès, a 4 de Julho de 2008. E eu, que estava à beira de me demitir de um emprego lastimável na altura, tinha sido convidada para apresentar o autor e conversar com ele. Aceitei apenas porque julguei que falaríamos para uma plateia de dez a quinze pessoas. Os deuses decidiram rir-se da minha cara e encheram a sala com cerca de trezentos leitores muito entusiasmados. O choque foi geral. Deve ter sido então que nos apercebemos todos de como se criara uma comunidade de leitores e fãs muito forte em torno das Crónicas.
Eu, o Rogério e o Luís temos excelentes memórias dessa semana com o George R. R. Martin. Uma pessoa afável, nada pretensiosa, imensamente talentosa com as palavras, entusiasmada, disponível para ser arrastado até ao topo do Castelo dos Mouros, em Sintra, ou a perder-se num carro às voltas, em direcção ao Porto.
Conheceu Lisboa inteira sem um queixume, mesmo apesar de algumas das suas dificuldades em andar muito. É um homem com um espírito tremendamente aventureiro e a sua amizade tornou-se inestimável para todos nós.
Nessa mesma semana, perdi o meu emprego, mas graças ao meu envolvimento nos eventos, as portas da Saída de Emergência abriram-se para mim e, em Setembro de 2008, tornei-me assistente do Luís Corte Real.
A longa espera
Os livros continuavam a ser traduzidos incansavelmente pelo Jorge Candeias, sem nunca falhar um único prazo. O sucesso constrói-se com base no profissionalismo de todos os colaboradores e o nosso tradutor nunca soçobrou sob o peso dos calhamaços.
O Festim dos Corvos e O Mar de Ferro foram lançados em 2009; chamo-lhes os livros da ressaca devido aos eventos culminantes de A Glória dos Traidores, um livro glorioso em todos os sentidos. E depois começou também a espera para os leitores portugueses.
Como leitora, a desvantagem de ler uma excelente série é o facto de termos de esperar que o autor conclua o próximo volume. No caso de George R. R. Martin, a espera foi demorada para os leitores das edições inglesas, em parte devido ao facto de o enredo ter atingido um ponto crucial que necessitava de muito labor na escrita para ser ultrapassado. Muitos leitores americanos começavam a desesperar e a insultar o autor.
Mas algo de sensacional estava em preparação. Em 2007, George R. R. Martin anunciara no seu blogue que os direitos de adaptação televisiva das Crónicas tinham sido comprados pelo canal norte-americano, a HBO.
Foi só em 2010 que a febre pela série começou a atingir o pico quando se divulgaram os números envolvidos na produção e os nomes dos actores. Começou então um novo capítulo neste fenómeno.
A Guerra dos Tronos na televisão
No ano de 2010, a HBO arrancou uma formidável máquina de marketing que iniciou a divulgação da série literária em todo um novo patamar. Sendo um canal norte-americano conhecido pela qualidade das suas séries, tornou-se rapidamente óbvio que esta seria uma das grandes apostas do canal para 2011. Ao lado de David Benioff e D. B. Weiss, George R. R. Martin trabalhou como produtor executivo e ajudou a mobilizar a sua massiva comunidade de fãs que manifestou todo o seu entusiasmo pela concretização da série.
Ao mesmo tempo, começavam os rumores de que o autor estaria prestes a finalizar, após quase cinco anos, o manuscrito do próximo volume das Crónicas, A Dance with Dragons, um livro que sabíamos que iria retomar as aventuras de várias personagens cruciais como Tyrion Lannister, Daenerys Targaryen e Jon Snow. Por cá, as vendas continuavam ao mesmo ritmo moderado de sempre, alheias às movimentações dos produtores da série. A série tinha data de estreia marcada nos EUA para 17 de Abril de 2011 e a imprensa norte-americana não foi imune à intensidade dos fãs de Martin que juraram que era uma das melhores séries de fantasia de sempre.
Os dragões voltam a voar
A 27 de Abril de 2011, uma semana depois da estreia do episódio-piloto de Guerra dos Tronos, George R. R. Martin publica a foto de um King Kong morto, no seu blogue.
Era o anúncio tão desejado por milhares de leitores de que, finalmente, King Kong (o apelido «carinhoso» que George R. R. Martin deu ao seu livro das Crónicas) fora derrotado e a obra finalmente veria a luz do dia nesse mesmo ano.
E esse dia lançou o caos na parte do planeamento editorial da Saída de Emergência.
Alterações tinham de ser feitas, dezenas de e-mails trocados com colaboradores, agentes e a distribuidora, planos de marketing teriam de ser pensados, uns livros adiados, outros antecipados para dar espaço ao King Kong. E era imperativo obter o manuscrito com a maior brevidade possível, manuscrito esse que tinha data de publicação prevista a 12 de Julho.
Após alguma insistência e muitas negociações, foi-nos cedido o ficheiro com a 1.ª metade do livro na língua inglesa. Jorge Candeias lançou-se de corpo e alma à tradução, e nessa altura, nós fomos literalmente afogados no sucesso da série televisiva que fez explodir as vendas em Portugal. A partir do mês de Junho, as encomendas dos oito volumes das Crónicas não paravam e entraram num ritmo alucinante. Todos, de repente, queriam ler os livros.
Tendo uma equipa editorial relativamente pequena, o impacto simultâneo da produção em tempo recorde de A Dança dos Dragões e o sucesso de vendas ascendente dos volumes anteriores, tornou-se sufocante e brutal. Tivemos um Verão esplêndido de trabalho. Por essa altura, descobrimos que o canal SyFy Portugal tinha os direitos exclusivos de exibição da série no país e começaram os contactos e parcerias de forma a promover ainda mais este autor na imprensa nacional. A fantasia de repente ganhara uma nova expressão em Portugal e extrapolou as fronteiras do género.
O trabalho de marketing foi também bastante exaustivo e obrigou a alguma criatividade para satisfazer as necessidades dos livreiros; marcadores, postéres, promoções, descontos, ofertas de livros, etc., e todos os dias surgiam, e ainda surgem, novas ideias. A nossa tradução do 9.º volume foi lançada a 9 de Setembro de 2011, e foi a segunda tradução mais rápida a ser lançada no mundo depois da edição croata. A Dança dos Dragões entrou directamente para o primeiro lugar dos tops nacionais e já temos data de publicação do próximo volume, Os Reinos do Caos, marcada para 27 de Janeiro de 2012.
Os timings foram infalíveis em todo este processo. Não tivesse sido o timing dos acontecimentos, muitas destas coisas não teriam acontecido. Neste Verão, o canal SyFy lançou a sua própria divulgação, preparando o terreno para a estreia da série em Portugal, que aconteceu no dia 17 de Outubro, estreia essa que promete renovar o interesse de novos leitores. Os segredos que tornaram George R. R. Martin um bestseller em Portugal? Estão todos nesta história e basta lê-la com atenção. Houve uma dose de sorte, mas houve também imenso trabalho envolvido e boa vontade de todas as partes. O fenómeno ainda continua e não se irá esgotar tão cedo devido à continuação da série televisiva, que irá estrear a 2.ª temporada em Abril de 2012, e ao sucesso de uma boa história que ainda não foi concluída.
*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico. Artigo retirado da revista BANG! n.º 11, publicada em fevereiro de 2011.