Publicado em Deixe um comentário

O Fantástico Mundo de Tim Burton: Nunca Confiem nos Vivos

Tim Burton - Bangcast

Há quem fale em comédia de horror ou horror de fantasia para descrever a semântica ficcional de Tim Burton, mas do que realmente falam Edward Scissorhands, Beetlejuice, Jack Skellington e Willy Wonka? Entre caixões e cemitérios, os seres imaginários parecem falar da vida, falando da morte. É o mundo intenso dos inadaptados. Aqueles que não se encaixam nas convenções sociais e nos espartilhos padronizados da normalidade. E isto não é ficção.

É um gesto desenhado com o toque suave do amor: o criador (Vincent Price) prepara-se para completar a sua obra biomecânica e colocar-lhe (por fim) as mãos, mas deixa-se surpreender por um ataque e desfalece aos pés da criatura. O incompleto Edward (Johnny Depp) não entende o que se passa naquele seu monólogo interior (porque não pode ter emoções). Inclina-se sobre o corpo inanimado e desliza os dedos sobre o rosto (provavelmente ainda quente). Este gesto do último adeus transformar-se-á em mutilação.

A narrativa começa então a deslocar-se criticamente para uma sociedade que se julga perfeita (cínica e hipócrita como todas as perfeições humanas) para que Tim Burton possa, simplesmente, contar a história de um jovem inadaptado através do seu trauma inicial (a morte e a solidão). Este fantasma do passado ressurgirá tantas vezes quantas ele for rejeitado pelos outros porque Edward Scissorhands é apenas um jovem incapaz de expressar os seus sentimentos.

Não se adapta à sociedade onde se vê abandonado e demora a reconstruir o seu mundo emocional. É um exílio interior numa sociedade que força os diferentes a mutilarem a sua natureza para serem aceites.

Se for verdade que existe demasiada realidade na vida de Edward Scissorhands, a «narrativização» do mundo de Beetlejuice (Beetlejuice, 1988) consegue projectá-la para o outro lado: «Nunca confiem nos vivos.» Não importa que Beetlejuice (Michael Keaton) esteja morto. O que importa é a história da sua inadaptação mesmo depois de morto.

O EXORCISTA DOS VIVOS

Ele pode ser sarcástico e ofensivo no mundo dos mortos porque Tim Burton está a subverter a própria morte, desde logo, quando apresenta Beetlejuice como «o maior exorcista dos vivos». Há demasiada vida na morte, sim. O problema de Beetlejuice não é propriamente estar morto, mas ser incomodado por pessoas vivas enquanto está morto.

É uma reiterada desconstrução das regras da morte que começa quando os protagonistas são mortos, logo no início do filme, e de uma forma, digamos, divertida. Adam (Alec Baldwin) e Barbara (Geena Davis) sabem que estão mortos e têm de refugiar-se no sótão (como se estivessem no purgatório) até conseguirem assombrar os vivos (que agora vivem na sua casa). É uma casa mal-assombrada porque os mortos não conseguem assombrá-la bem: «Troubled by the living? Is death a problem and not the solution? Unhappy with eternity? Having difficulty adjusting? Call Betelgeuse.»

Não é apenas a morte que é divertida: o estarem mortos também, porque conseguem reinventar-se como fantasmas enquanto assombram um casal irritante e a sua filha adolescente depressiva e solitária (Winona Ryder). Não é por acaso que esta jovem inadaptada é a primeira a compreender que vive numa casa assombrada. Não só não teme os fantasmas, como se desloca da realidade gasta da sua família disfuncional para a estimulante mundo da morte.

É aí que Betelgeuse se comporta com o mais vivo de todos os mortos. É um solitário incapaz de se adaptar à própria morte e exagera tanto na lascividade como nos arrotos (principalmente quando coça a virilha em simultâneo). Manipula agressivamente as relações com os outros e comporta-se como se os limites se aplicassem apenas à sociedade que o marginalizou. Betelgeuse pode ser um louco incompreendido, mas é o único que vive a morte até aos seus limites.

AS EMOÇÕES DOS SEM CORAÇÃO

Estas personagens inadaptadas são produto de um jogo satírico que apela à insurreição normativa, e também por isso, The Nightmare Before Christmas (1993) parece (enganadoramente) um conto infantil clássico (na fronteira entre o Natal doce e o assustador Halloween). Uma narrativa de conto fantástico musicado, mas (sendo tudo isso) talvez o sentimento de uma certa angústia seja a característica mais impressiva.

Não é coisa pouca, isso de viver na morte: também Jack Skellington (Danny Elfman/Chris Sarandon) vive tão morto quanto Betelgeuse.Tim Burton começa a fazer desfilar esqueletos e espantalhos, bonecas de trapos e bichos papões (quem nunca sonhou com o Oogie Boogie?), corcundas e bruxas, caras costuradas e figuras geometricamente erráticas (toda uma enciclopédia-pesadelo infantil num único bestiário gótico). Podia ser um clássico filme de horror, mas esta animação stop motion é (mais) uma versão do seu fantástico mundo (um desafio à zoologia fantástica de Jorge Luís Borges). Há quem sinta uma atmosfera sombria nestas monstruosidades, mas se isto puder ser escrito assim, talvez sim, talvez sejam monstros, mas são monstros emocionais e incompreendidos. É um horror suave que (em boa verdade) dispensa mediação narrativa.Jack Skellington tem como missão celebrar os mortos nas festas de Halloween da sua cidade, mas é o enigmático Natal que o deixa fascinado. Veste-se de Pai Natal para distribuir (horríveis) presentes no seu caixão-trenó e assume o espírito da época que mais ninguém à sua volta compreende (a desgraçada sociedade padronizada). É um esqueleto horrível (e sem coração) que se emociona com o mundo das crianças e emociona-se sem que vejamos os seus músculos e as suas expressões (porque é uma caveira sem olhos). É preciso olhar mais para dentro para ver Jack Skellington e é isso que impressiona: a emoção de uma personagem sem vida (esse esqueleto sem coração com a sua caveira sem olhos).

A MORTE NÃO É ASSIM TÃO MÁ

O final não é feliz (porque a vida nunca acaba bem), mas Tim Burton lá deixa Jack Skellington beijar a boneca de trapos Sally (Catherine O’Hara), tal como Edward Scissorhands também ela artificialmente nascida. O enquadramento da Lua e a banda sonora completam o quadro narrativo de uma história em que só falta morrerem para sempre. Teriam sido felizes. Adivinha-se uma linha de continuidade quando Victor Van Dort (Johnny Depp) encontra Victoria Everglot (Emily Watson) para assim reencontrar o derradeiro amor com a sua noiva viva (Corpse Bride, 2005).

Victor e Victoria começam por ficar presos num noivado forçado. São as grilhetas das convenções impostas pelos pais (embora depois acabem por se apaixonar ao som do piano) como produtos artificiais de sociedade vitoriana profundamente normativa e marcada pelas posições sociais. Victor Van Dort não consegue responder a todas essas exigências e os seus fracassos são (devidamente) anunciados por um pregoeiro para expor as suas vulnerabilidades.

Quando procura um porto de abrigo, Tim Burton leva-nos (novamente) para um cemitério para que Victor Van Dort possa entrar no mundo certo: a Terra dos Mortos. Na Terra dos Vivos, as personagens estão mortas por dentro, como zumbis seguindo códigos sociais, mas na Terra dos Mortos, os habitantes estão realmente vivos porque desfiam as fronteiras da aceitação. Há por aqui uma consciência. A larva que vive na caveira da noiva morta (Helena Bonham Carter) intervém como a voz interior de Emily e invoca a voz que todos temos dentro de nós: poderá um coração despedaçar-se mesmo depois de parar de bater?

O CHOCOLATE NÃO TEM DE FAZER SENTIDO

A morte não é assim um lugar tão obscuro, ou (pelo menos) não mais obscuro que algumas sociedades nesta história de amor e de sacrifício (anda por ali um cocheiro doente que se sente «esplêndido» depois de morrer). Tim Burton deposita este imenso peso emocional nos ombros frágeis de Charlie Bucket (Freddie Highmore), uma criança amorosa e obediente, e da sua família igualmente calorosa e carinhosa: «I wouldn’t give up my family for anything, not for all the chocolate in the world.» Tudo em fortíssimo antagonismo com as outras crianças (uns verdadeiros trastes) desta história açucarada (Charlie and the Chocolate Factory, 2005).

É com a pureza de Charlie que nos ligamos e com ele sofremos a miséria material da sua família (aconchegada numa casa saída dos Três Ursinhos). Toda esta magia dos contos infantis fortifica-se com a fantástica e surreal Fábrica de Chocolate que (pairando sobre toda a cidade/sociedade) esconde uma outra narrativa. A doçura produzida pela infalível tecnociência que produz as melhores guloseimas do mundo irá desaparecer, revelando assim a escuridão escondida desde o início da narrativa.

Willy Wonka (Johnny Depp) é o mestre dessa cerimónia sinistra de revelação.

As crianças ranhosas (ranhosas como os seus pais) vão sendo por ele punidas: Augustus Gloop é aspirado por um tubo de chocolate devido à sua ganância; o excesso de confiança e irritante hiper-competitividade de Violet Beauregarde transforma-a num mirtilo; a arrogância e egoísmo mimado de Veruca Salt fazem com que seja sugada pelo o subsolo por roubar nozes aos esquilos; e o insolente e agressivo Mike Teavee vê-se encolhido por um teletransportador, pagando o preço do seu vício por excesso de televisão.

Cada criança castigada tem direito à sua própria canção de despedida como uma sentença musicada das suas deficiências de carácter (e dos pais).

É o criador da fantástica Fábrica de Chocolate que se revela o seu carrasco (moral). Willy Wonka é desconfiado (acha que lhe querem roubar as receitas secretas) e vive atormentado pela rejeição do pai (Christopher Lee) desde que lhe revelou o sonho de produzir chocolate. O que sabemos através de um flashback visual induzido por um comentário de Charlie Bucket: «O chocolate não tem de fazer sentido, por isso é chocolate.» Reencontrará o pai mais tarde, mas sem que este o reconheça.  Um dentista que havia contrariado o seu sonho de ser chocolateiro devido aos danos provocados nos dentes pelo excesso de açúcar: «Vejamos qual é a dimensão dos estragos.» Os estragos são emocionais, depois da longa separação.

Se a rejeição for uma outra forma melancólica de morte, a separação (o abandono) parece invocar a morte do pai amado de Edward ScissorhandsBasta ver que, quando conhece os visitantes da sua fábrica, Willy Wonka revela-se incapaz de pronunciar a palavras «pais», e volta a (não) fazê-lo quando conhece os pais de Charlie.

 A Fábrica de Chocolate é o mundo interior de Willy Wonka e acaba por se transformar numa projecção de sua mente (nunca se sabe o que está por detrás de cada porta). É a angústia do relacionamento com pai que origina todos aqueles lugares estranhos e que se manifesta quando (este adulto encarcerado na mente de uma criança) é também rejeitado por Charlie Bucket: «I wouldn’t give up my family for anything, not for all the chocolate in the world.»

Quando Tim Burton desliza os dedos sobre o rosto do pai, o gesto do último adeus acaba por se transformar em mutilação devido às lâminas afiadas em forma de dedos. As mãos artificiais ficaram por colocar devido à morte súbita do pai e essa mutilação permanecerá para sempre.

DELICIOSAMENTE MACABRO

É um desfile de autores académicos e de teorias científicas sobre universos imaginados. The Philosophy of Tim Burton (Jennifer L. McMahon, edi., University Press of Kentucky, 2014) propõe um conjunto de diferentes interpretações sobre a «assinatura macabra» de Tim Burton. Chamam-lhe «deliciosa assinatura macabra» pelo fascínio que provoca nas audiências, mesmo tratando-se de mundos ficcionais sinistros. Procuram significados através do estudo filosófico da arte e oferecem mais perguntas do que respostas. Fizeram bem.

A TERAPIA DOS FILMES

Fica sempre muito por dizer sobre as personagens e os filmes dirigidos e produzidos por Tim Burton. É impossível abarcar esta galáxia criativa, mas talvez a obra de Ian Nathan (Tim Burton: The iconic filmmaker and his work, 2016) constitua uma belíssima ferramenta de interpretação. Desde logo, porque começa por colocar o autor dentro das dinâmicas da história do cinema de horror para assim demonstrar as suas singularidades. É um relato da sua ascensão das trevas (para onde sempre regressa).

*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico.
Uma versão reduzida deste artigo pode ser encontrada na revista BANG! n.º 33, publicada em maio de 2023.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *