
por Pedro Lisboa
Quanto mais recuarmos no tempo, mais a história do aparecimento dos role playing games (RPG) se confunde com a do seu primeiro e mais famoso jogo: Dungeons & Dragons (D&D). Como fenómenos culturais, os jogos de personagem têm a característica invulgar de uma origem clara e bem conhecida, ainda que complexa.
Sem prejuízo do notável golpe de inspiração que representou a criação do primeiro RPG, os autores não partiram, como é evidente, de um vácuo. Pelo contrário, as suas raízes distantes, mas substantivas, remontam ao início do século XIX e encontram-se no domínio relativamente improvável da instrução militar prussiana.
Este texto pretende apresentar um resumo genealógico, uma espécie de livro de linhagens, do D&D, até ao momento da sua concepção. Como adenda, segue-se um breve apanhado da história dos primeiros anos de RPG em Portugal, traçando os paralelos possíveis, sem perder de vista a escala e o contexto próprios.
CONFLITOS LILIPUTIANOS
Sobre a concisão abstracta com que o xadrez destila os preceitos da guerra, o entomólogo alemão Johann Christian Ludwig Hellwig (1743-1831) encetou uma mudança de paradigma que ecoa até aos nossos dias, ao inventar o Kriegsspiel (literalmente, «jogo de guerra»). A distância do venerável antepassado foi aumentando com os aperfeiçoamentos feitos ao longo da vida do autor, até às regras de 1803 do seu «jogo táctico», em que aconselha um monstruoso tabuleiro de 1.617 casas e 940 pelas de jogo (e que, não a despropósito, o próprio Hellwig se encarregava de vender).
No entanto, foram os militares Georg Leopold von Reiswitz (1760-1828) e o seu filho Georg Heinrich (1794-1827) que reformularam, difundiram e imortalizaram o Kriegsspiel, ao assegurarem a sua adopção nas academias militares prussianas como instrumento de aprendizagem e treino estratégicos, inaugurando, para todos os efeitos, uma tradição pedagógica perene. Do ponto de vista das inovações mecânicas, relevam as tabelas probabilísticas, os mapas e as unidades à escala, o uso de dados para simular a incerteza e a figura imprescindível do juiz, guardião da «ideia geral» do jogo e garante imparcial da aplicação das regras; mutatis mutandis, um mestre de jogo.
Apesar do patrocínio e do uso que recebeu desde então, o Kriegsspiel dos Reiswitz não deixou de ser criticado e apurado ao longo dos anos, desde logo pela sua complexidade e extensão. Destes contributos, talvez o mais significativo para nós, tenha sido o do general Julius von Verdy du Vernois (1832-1910), cuja simplificação preconiza o quase total abandono dos cálculos matemáticos e outras regras «duras» em prol de um diálogo entre os jogadores e o juiz.
Já é, portanto, possível reconhecer no Kriegsspiel algumas características dos jogos de estratégia (e de personagem) modernos, mas foi a popularização de brinquedos militares no final do século XIX, em especial soldadinhos de metal pintado, que transferiu para a esfera lúdica aquilo que, até então, fora um puro exercício de formação militar.
Neste registo, por exemplo, há relatos de jogos de guerra inventados e organizados pelo autor de A Ilha do Tesouro, o escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), cuja saúde débil o levou a desenvolver desde pequeno um carinho especial pelos seus «leaden soldiers» (ver o poema The Land of Counterpane).
No entanto, o principal marco deste novo gosto, geralmente considerado o precursor dos jogos de guerra modernos, surge pela mão de outra figura literária de renome, o escritor H. G. Wells (1866-1946). Em Little Wars (1913), Wells descreve regras relativamente simples para simular todo o tipo de batalhas, recorrendo a soldados, obstáculos e terreno em miniatura. Num tom provocatório e bem-humorado, as «pequenas guerras» dirigem-se a «rapazes dos 12 aos 150 anos e ao tipo de raparigas mais inteligentes que gostam dos jogos e dos livros de rapazes». Em absoluto contraste com o Kriegsspiel, incentiva-se a criatividade e o prazer do jogo e da imaginação juvenil.
Em linha com as suas convicções pacifistas, Wells acreditava que o seu jogo serviria não apenas para divertir, mas também para demonstrar os horrores da guerra, já que, a qualquer soldado em potência, bastaria «jogar três ou quatro vezes às Pequenas Guerras para entender o tremendo disparate que é a Grande Guerra». Como sabemos, as suas palavras tristemente optimistas e ingénuas foram abafadas pelas explosões de duas guerras mundiais.
OMBROS DE GIGANTES
Um dos jovens entusiastas deslumbrado pela descoberta dos novos wargames foi Ernest Gary Gygax (1938-2008). Nascido em Chicago, Gygax mudou-se em criança para a pequena e pacata cidade lacustre de Lake Geneva, no Wisconsin. A sua paixão por jogos de toda a espécie só encontrava rival na avidez com que consumia uma dieta literária rica em pulp, generosamente guarnecida com romances históricos de aventuras e temperada q.b. com ficção científica (ver «Espada & Feitiçaria & Dados», BANG! n.º 18).
Em 1967, Gygax foi co-fundador da International Federation of Wargaming, um clube regional de jogos (a designação transfronteiriça era manifestamente optimista, ao jeito norte-americano). Nesse âmbito, em 1968, alugou o Salão de Horticultura de Lake Geneva para receber uma das primeiras convenções dedicadas a jogos de guerra a que decidiu chamar, por abreviatura, Gen Con. O encontro, com cerca de 100 participantes, foi considerado um sucesso, na medida em que as receitas permitiram, à justa, cobrir todas as despesas (a convenção, que actualmente se realiza em Indianapolis, contou, em 2016, com mais de 60.000 visitantes).
Determinado a realizar a sua ambição, em 1970, despediu-se do emprego numa seguradora e, com um acto de coragem ou insensatez financeira, dedicou-se à criação de jogos. O resultado foi a publicação, um ano depois e em parceria com Jeff Perren, de um conjunto de regras para combates medievais, intitulado Chainmail. Como bónus, e porque correspondia aos seus interesses literários, Gygax incluiu no jogo um «suplemento de fantasia» onde descreve regras opcionais para heróis, feiticeiros, gigantes e espadas mágicas. Uma parte não-negligenciável do seu público-alvo rejeitou explicitamente a variante, considerando-a demasiado pueril e folclórica. Para outros, foi uma epifania.
UMA FILOSOFAL PEDRA CASTANHA
David Lance Arneson (1947-2009), um jovem estudante de História na Universidade do Minnesota, fazia parte do principal clube de jogos de estratégia da região de Minneapolis-Saint Paul. No Inverno de 1967, David Wesely (1945-) convidou Arneson e os restantes membros do grupo para uma sessão de um jogo diferente de qualquer outro, que recentemente inventara. Depois de descrever o cenário da acção – a aldeia ficcional de Braunstein, durante as guerras napoleónicas –, Wesely entregou a cada jogador o controlo de uma única personagem, com objectivos e características próprias. Para surpresa dos participantes, habituados a comandar batalhões, regimentos e exércitos, algumas personagens nem sequer tinham funções militares, como o chanceler dos estudantes ou o banqueiro. As regras formais eram quase inexistentes, pelo que os jogadores deviam negociar e discutir uns com os outros para atingir os seus objectivos, mediante a adjudicação de Wesely, o juiz.
Em pouco tempo, os Braunsteins despertaram tal interesse junto da comunidade, que Dave Arneson passou também a assumir funções de organizador e juiz. Nos anos que se seguiram, foram encenadas diversas variantes do jogo, como Piedras Morenas (república das bananas latino-americana) ou Brownstone (aldeia texana).
Com o passar do tempo, Arneson começou a sentir a falta de um sistema de regras mais estruturado para os seus jogos, pelo que, em 1971, decidiu utilizar o recém-publicado Chainmail como base do seu Braunstein mais recente, com temática medieval-fantástica, a que chamou Blackmoor. Para colmatar outra falha das versões anteriores, Arneson introduziu ainda o conceito inovador de campanha; as personagens eram transferidas de sessão para sessão juntamente com as respectivas experiências e posses. Com Blackmoor, estava inventado o antecessor directo de D&D.
O CAOS E A LEI
Arneson conhecera Gary Gygax em 1969, quando viajou até Lake Geneva para participar na segunda edição da Gen Con. A proximidade de interesses motivara, desde então, um contacto relativamente próximo entre ambos, que chegou a levar à co-autoria de um jogo naval, Don’t Give Up the Ship, em 1972.
Pouco depois, no final do mesmo ano, Arneson mostrou Blackmoor a Gygax, que, de imediato, entendeu que tinha nas mãos um diamante em bruto. Dando largas ao espírito sistemático, pediu a Arneson que lhe enviasse todas as suas notas e revisões, e lançou-se a desenhar um novo sistema de regras que ordenasse e aproveitasse toda a originalidade caótica do jovem parceiro. Para isso, criou o seu próprio mundo ficcional e a respectiva campanha, Greyhawk, e recrutou alguns companheiros de jogo e os filhos, Ernie e Elise, como cobaias para as aventuras que começou a escrever.
O bulício criativo, alimentado pelo diálogo entre Gygax e Arneson, depressa contagiou os grupos locais de jogadores; a originalidade e o potencial deste novo jogo não deixavam ninguém indiferente. Neste período, cada sessão estava repleta de mistério e descoberta, já que os jogadores raramente adivinhavam o que iria acontecer, em parte pela constante introdução e modificação de regras.
Finalmente, Gygax terminou a primeira versão completa das regras e o título provisório, Fantasy Game, foi mudado por sugestão familiar, para um mais estimulante Dungeons & Dragons. No início de 1974, os mil exemplares da primeira edição da caixa castanha chegaram ao mercado com a chancela da editora fundada para o propósito, a Tactical Studies Rules, ou TSR. No contexto da época, sobretudo tendo em conta que se tratava de uma iniciativa mais ou menos amadora (os três livros contidos na caixa foram dobrados e agrafados à mão pelos editores e famílias), a impressão de uma tiragem desta dimensão era inaudita, obrigando Gygax a recorrer a investidores externos.
AS MASMORRAS E OS DRAGÕES ASSINALADOS
A história inicial dos jogos de personagem em Portugal, não é feita de rasgos criativos, mas de divulgação tímida. De facto, a segunda metade da década de 70, pelo momento histórico particular e agitado, dificilmente constituiria o terreno ideal para a recepção sustentada deste tipo de jogos e ainda menos para o desenvolvimento de uma comunidade conexa.
Não obstante, à semelhança do que acontecera anos antes nos EUA, mas a uma escala muitíssimo mais reduzida, era então possível encontrar por cá grupos de entusiastas de jogos de guerra, tanto na vertente de miniaturas como de tabuleiro, organizados em torno de lojas de modelismo e um ou outro coleccionador mais activo. Em 1975, por exemplo, os n.os 4-5 do importante fanzine suíço Europa, dedicado a jogos de estratégia, conta com um português entre uma centena de assinantes, o que, por pouco que pareça, não deixa de ser significativo.
Um dos resultados mais visíveis desta presença discreta foi a publicação comercial do primeiro jogo de guerra português, A Guerra dos Planetas, em 1981, da autoria de Sebastião Alves. A ambientação de ficção científica, compreensível à luz da proximidade da estreia de A Guerra das Estrelas, deixa antever uma abertura a temáticas não-históricas e especulativas, que constituem requisito sine qua non do imaginário rolístico, mas que nem sempre se coadunam com a seriedade dos wargamers.
É possível que tenha havido algumas experiências isoladas anteriores, mas a primeira vaga consistente de jogadores de RPG em Portugal data do início dos anos 80. Com base nos relatos e nas memórias de alguns dos intervenientes, encontramos dois elementos recorrentes: um amigo, um familiar ou uma estada no estrangeiro que dão a conhecer os jogos de forma fortuita ao «jogador zero»; e, a partir daí, uma difusão feita quase exclusivamente por passa-palavra. Não havia no país editoras, lojas ou qualquer outro meio formal de conhecer e praticar o hobby, excepção pontual feita aos ecos que chegam de fora, por exemplo na revista francesa Jeux et Stratégie, que contava com alguns leitores portugueses.
Ainda assim, as poucas sementes germinaram lentamente durante os anos seguintes, nutridas, muitas vezes, por iniciativas individuais que se dirigiam a periódicos especializados e vendedores estrangeiros, provenientes em parte do seio da pequena comunidade de jogadores de miniaturas e de estratégia que, sem o saberem, partilhavam intimamente os antepassados com os jogos de personagem.
Em 1985, todavia, três acontecimentos assinalaram o início de uma nova fase. Em primeiro lugar, foi fundado o primeiro clube de RPG português, a Torre do Necromante, na Academia Recreativa de Santo Amaro, do bairro lisboeta de Alcântara. O colectivo, que esteve em funcionamento até ao final da década, reunia semanalmente algumas poucas dezenas de jogadores, e chegou a publicar três números de um fanzine, Bola de Cristal. Curiosamente, o jogo assumidamente preferido e mais jogado na Torre não era o D&D, mas sim o mais complexo e menos conhecido Runequest.
O segundo, foi o início da publicação de uma coluna semanal, dedicada à divulgação dos jogos de personagem, no jornal Diário Popular (entre 9 de Novembro de 1985 e 22 de Fevereiro de 1986). Para além da preocupação pedagógica dos autores, que tinham a seu cargo, ao fim e ao cabo, explicar aos leitores um tipo de jogo inteiramente desconhecido, os artigos são ainda notáveis por conterem um sistema original de regras, intitulado Os Druidas do Eclipse, que apresentam de forma modular e progressiva como introdução aos RPG. Pesem embora as regras sinuosas, vistas com o benefício de mais de trinta anos, muitos jovens jogadores encontraram ali o ponto de entrada no hobby.
No mesmo ano, foi ainda publicada pela Editorial Verbo a primeira edição de O Feiticeiro da Montanha de Fogo, o volume inaugural da colecção Aventuras Fantásticas, criada pelos britânicos Steve Jackson e Ian Livingstone, como um híbrido entre os jogos de personagem e a literatura fantástica tradicional. Apesar de a experiência solitária ser muito diferente da de um RPG, a sobreposição de imaginários fez dos livros verdes, desde então, um dos principais chamarizes para os jogos de mesa com temática fantástica.
O crescimento da presença dos jogos de personagem em Portugal teve o seu momento de consolidação com a publicação, no final de 1989, das Regras de Base de D&D, a famosa caixa vermelha Mentzer. A iniciativa, da responsabilidade do tradutor e editor José Hartvig de Freitas, assinalou a passagem de um registo exclusivamente amador para o mundo das licenças oficiais do maior RPG mundial. Apesar de o seu sucesso comercial não ter correspondido às expectativas iniciais, em parte devido a desaguisados com a editora SocTip, o aumento substancial de exposição permitiu a uma nova geração de jogadores tomar contacto com jogos de personagem. A título de ilustração, considere-se que a sua distribuição esteve, a dado momento, a cargo da editora Europa-América, que disponibilizou o jogo em livrarias de todo o país. Infelizmente, não chegou a bom porto o plano de publicar uma extensa colecção de suplementos e módulos, assim como de criar uma rede nacional de clubes de jogo, tendo sido apenas dada à estampa a aventura introdutória Colina do Terror (1989).
Nos anos seguintes proliferaram os clubes e os grupos de jogo, sobretudo na área da grande Lisboa, de entre os quais se destaca o Clube de Jogos de Simulação (CJS), ao Saldanha, que juntava veteranos dos jogos de guerra e jogadores de RPG, por regra mais jovens. Este colectivo, que provavelmente terá sido o maior clube português dedicado a jogos de personagem e de estratégia, chegou a contar com um núcleo em Cascais, e foi responsável por diversos torneios e acções de divulgação.
No mesmo período, houve uma última tentativa de dinamizar o panorama editorial português pela mão da editora Imperium Jogos, que começou a tradução de Traveller e perspectivou a edição nacional de Vampire: The Masquerade; para desaire dos fãs dos jogos de personagem, ficou-se pela publicação de dois jogos de tabuleiro de ficção científica, Battletech e o homónimo Imperium, antes de fechar as portas.
O encerrar desta segunda etapa consumou-se com o terramoto que teve tanto de inesperado como de avassalador e que virou do avesso o universo dos jogos analógicos em meados dos anos 90: o aparecimento triunfal de Magic: The Gathering. Em Portugal, como no resto do mundo, a voragem dos jogos de cartas coleccionáveis transformou irreversivelmente o panorama dos RPG.
ESSA, NO ENTANTO, É OUTRA HISTÓRIA.
*O presente texto segue a ortografia pré-Acordo Ortográfico. Artigo retirado da revista BANG! n.º 22, publicada em julho de 2017.